sexta-feira, 13 de junho de 2008

120 anos do nascimento de Fernando Pessoa

sérgio almeida
JN

O poeta que viveu e morreu quase anonimamente converteu-se no maior ícone da língua portuguesa, o único cuja glória não conhece fronteiras. Nos 120 anos do nascimento de Fernando Pessoa, o fervor em torno da sua obra está intacto.
O homem sem biografia - "um cabide onde todas as figuras que criou se suspendem", como o define Mário Cláudio, autor do recente "Boa noite, Senhor Soares", um itinerário novelesco do universo pessoano - tem inspirado, nas últimas décadas, mais criações do que qualquer outro autor português. Um contrasenso? Não necessariamente. "É uma figura neutra, onde tudo cabe. Mas, acima de tudo, Pessoa é muito mais um actor do que um escritor, porque representou vários papéis", defende Mário Cláudio, que diz preferir de longe os heterónimos do autor aos textos publicados em nome próprio. O fascínio provocado por esta figura elíptica, demasiado ausente para encaixar neste Mundo, é bem evidente nas dezenas de aproximações à sua vida e obra feitas por criadores, nacionais e estrangeiros, de áreas como as artes plásticas, literatura, cinema, música e teatro. Os dois quadros pintados a título póstumo pelo seu amigo Almada Negreiros - com o poeta sentado a uma mesa de café a fumar - são a imagem mais recorrente , mas não propriamente a única. Artistas como Vieira da Silva, Mário Botas, Alfredo Margarido, Jorge Martins, Costa Pinheiro e José de Guimarães, entre muitos outros, contribuíram para tornar familiar o rosto de Fernando Pessoa junto de públicos que não são leitores habituais. A reprodução destes estereótipos (com os óculos, chapéu e bigode característicos) teve, porém, um lado menos benéfico, segundo o crítico de arte Rui Mário Gonçalves, ao criar algumas "imagens anedóticas". A (omni)presença pessoana é tal que não se torna fácil encontrar um criador musical português que, a dada altura da sua obra, não se tenha confrontado com o poeta nascido há precisamente 120 anos. Basta citar Fernando Lopes-Graça, Joly Braga Santos, José Afonso, Mariza ou Camané, mas também os mais improváveis Sam the Kid e D-Mars. Com menor prevalência, o teatro não tem escapado à incursão pela obra de Pessoa. Já este ano, o encenador Ricardo Pais concretizou um projecto de longa data, levando à cena "Turismo infinito", primeiro no Teatro São João e depois em digressão nacional, um mosaico formado por algumas das dezenas de personagens que compõem a identidade pessoana. Com tamanha multiplicação de projectos, o habitual discurso adoptado na revisitação de vultos da arte já desaparecidos - o esquecimento - perde todo o sentido. José António Gomes, professor universitário que organizou a antologia "Poesia de Fernando Pessoa para todos", admite que "os justos esforços de divulgação da sua obra deveriam ser extensivos a outros autores igualmente importantes da literatura lusa, como Aquilino, Camilo e, até, Camões". Apesar de o fervor se manter intacto, José António Gomes acredita que "ainda há muito por fazer" juntos dos jovens do primeiro e do segundo ciclos do ensino básico, pelo que se justifica o lançamento de uma antologia que reúne 30 poemas, entre os quais "Poema pial", "Ó sino da minha aldeia" ou "A fada das crianças", e conta com ilustrações de António Modesto, plenas de referências ao cubismo e a outros movimentos do século XX. A certeza de que mais pode ser feito é também defendida pelo investigador Richard Zenith, que, em declarações à Lusa, considerou ser necessário um investimento adicional capaz de revelar "o grande mistério do génio".

Biblioteca e espólio de Pessoa vão estar na Internet

13.06.2008 - 12h35 Luís Miguel Queirós
Dois ambiciosos projectos de divulgação na Internet de materiais pessoanos, ambos envolvendo o investigador Jerónimo Pizarro, irão permitir que especialistas nacionais e estrangeiros tenham acesso online ao espólio de Pessoa, que neste momento ainda se encontra nas mãos dos seus herdeiros, bem como a todas as páginas de todos os volumes da biblioteca que pertenceu ao poeta, incluindo a centena e meia de livros e revistas que os familiares conservaram e que não estão, como os restantes - cerca de 1200 - na Casa Fernando Pessoa.O projecto de digitalização integral da biblioteca de Pessoa conta com o apoio da Câmara de Lisboa e da Casa Fernando Pessoa. Será através do site desta instituição que, no futuro, os interessados irão poder folhear virtualmente os livros do poeta, nos quais este deixou uma abundante "marginalia", incluindo notas de leitura, poemas (alguns ainda inéditos) e uma grande variedade de outros escritos. A equipa de investigadores que trabalha no projecto digitalizou até agora 200 livros; prevê-se que, em breve, possam ser disponibilizadas na Net algumas dezenas de páginas, a título de arranque simbólico da iniciativa. A Câmara de Lisboa já recebeu 50 mil imagens, e há ainda muitos livros por digitalizar. O trabalho sofreu alguns atrasos, porque o software de que a autarquia dispunha não aguentou o volume de informação. Uma das vantagens deste projecto, sublinha Pizarro, é permitir reunir num só lugar, ainda que virtual, os livros da Casa Fernando Pessoa e os que a família do poeta detém, tanto mais que não é ainda claro o destino que poderão vir a ter estes últimos. Por exemplo, o leilão de peças do espólio de Pessoa que a leiloeira Potássio 4 anunciou para Outubro inclui alguns livros. Já nunca será possível reconstituir o que foi exactamente a biblioteca de Pessoa, porque este se desfez de muitos livros durante a sua vida. E mesmo entre aqueles que ainda se encontravam nas mãos da família em 1935, quando o poeta morreu, sabe-se que alguns desapareceram nas últimas décadas, já depois de as pessoanas Maria Aliete Galhoz e Maria da Encarnação Monteiro terem procedido à sua inventariação. A família de Pessoa, que se mostra agora interessada em vender o que lhe resta do espólio, sempre procurou garantir que todas as peças fossem previamente digitalizadas. Vê, portanto, com bons olhos esta iniciativa, e permitiu que uma equipa de investigadores digitalizasse todas as peças, incluindo não apenas os livros, mas também os muitos manuscritos, de diversa natureza, que não se encontravam na famosa arca, cujo conteúdo o Estado arrolou e que acabaria por comprar, em 1979. O grupo de pessoanos envolvido deu prioridade aos livros e revistas que estavam com os herdeiros, dos quais só não digitalizaram ainda, segundo Pizarro, "dois ou três que já foram para a leiloeira". Digitalização de urgênciaFoi justamente o primeiro leilão de materiais do espólio de Pessoa, organizado pela P4 em Dezembro do ano passado, que levou Pizarro a acordar com a família a digitalização, com carácter de urgência, de todos os papéis que esta ainda possuía. Durante uma semana, quatro ou cinco investigadores, cada um com um scanner de alta resolução, estiveram em casa da sobrinha de Pessoa, Manuela Nogueira, a digitalizar furiosamente os documentos que estavam na sua posse e na do seu irmão, Luís Miguel Rosa. "Num dos dias, ficámos até à meia-noite", diz Pizarro. "Quando achávamos que já tínhamos terminado, aparecia sempre mais alguma coisa." Acabaram por digitalizar cerca de 2300 documentos, que incluem o volumoso "dossier Crowley", porventura a peça mais importante já anunciada para o leilão de Outubro. Inicialmente, Pizarro pensou que faria sentido disponibilizar todo este material no site da Biblioteca Nacional (BN), onde está o essencial do espólio. No entanto, como não teve ainda resposta da BN, desenha-se agora a possibilidade de estes papéis virem a ser divulgados através do site do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa, que Pizarro integra.

«Sou fácil de definir»

«Se depois de eu morrer,
quiserem escrever a minha biografia,
Não há nada mais simples.
Tem só duas datas - a da minha nascença e a da minha morte.
Entre uma e outra todos os dias são meus.»
Há 120 anos atrás nascia em Lisboa, Fernando António Nogueira Pessoa. Considerado por muitos como um dos maiores poetas da língua portuguesa, ao lado do épico Camões, viveu a maior parte da sua juventude em África do Sul e por isso o seu rico espólio conta também com alguns poemas em inglês.
Documentos na Internet
Para assinalar o aniversário de Pessoa existem inúmeras iniciativas mas a que perpetuará o nome do poeta é a levada a cabo por Jerónimo Pizarro, investigador do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa, e consiste na digitalização de todo o espólio pessoano para ser colocado, mais tarde, à disposição de todos os cibernautas.
Desta forma, Pizarro pretende preservar as obras de Pessoa. O projecto apoiado pela Casa Fernando Pessoa e pela Câmara Municipal de Lisboa já conta com 200 livros digitalizados, refere o Público.
Mas, a cultura contemporânea também não esquece Fernando Pessoa e para marcar o dia a Câmara Municipal de Lisboa e a Casa Fernando Pessoa promovem um concerto de hip hop ligado à obra do poeta.
O poeta das muitas caras
Multifacetado, considerava-se «fácil de definir», Pessoa teve participações no jornalismo, na publicidade, no comércio e principalmente na literatura onde se multiplicou em muitas outras personalidades, os heterónimos, Ricardo Reis, Álvaro de Campo e Alberto Caeiro.
Morreu aos 47 anos, na sua certidão de óbito refere «bloqueio intestinal» como causa da morte mas são muitos os que asseguram que terem sido os problemas hepáticos.
A sua última frase foi escrita em inglês e foi tão profunda como a sua liberdade poética «I Know not what tomorrow will bring», «Eu não sei o que o amanhã trará».
Pessoa, o poeta fingidor
Em 1986, Ivo Castro organizou uma edição crítica do conjunto de poemas que constituíam o Guardador de Rebanhos, de Alberto Caeiro, que fê-la acompanhar de uma reprodução fac-similada do respectivo manuscrito.
Mas, no momento em que o Estado comprou o espólio de Fernando Pessoa o manuscrito que deveria estar no baú desapareceu e só mais tarde é que se veio a saber que estava nas mãos de um primo do poeta, Eduardo Freitas da Costa.
«O poeta é um fingidor. Finge tão completamente Que chega fingir que é dor A dor que deveras sente.»
No documento «desaparecido» encontravam-se fortes provas de que o célebre «dia triunfal» de 8 de Março de 1914, em que Fernando Pessoa terá escrito «trinta e tal poemas a fio», é no fundo a constatação de uma das maiores características do poeta, o facto de saber fingir.
Caeiro não escreveu todos os poemas seguidos como contou numa carta a Casais Monteiro, terá sido tudo uma premeditada encenação de Pessoa

Fernando Pessoa, o poeta "multiplicado"

Há precisamente 120 anos nascia em Lisboa Fernando António Nogueira Pessoa, um dos maiores poetas portugueses de todos os tempos e que marcou uma geração de artistas e poetas em Portugal.

Pedro Junceiro pjunceiro@destak.pt

Apelidado, por diversas vezes, de génio da escrita, Fernando Pessoa marcou a sua vida pela diferença, desde a sua juventude, que passou na África do Sul, até aos seus últimos dias em Portugal, na "companhia" dos seus heterónimos.

Umas vezes idealista, outras realista, ora amargo, ora alegre e bem-disposto, Fernando Pessoa exprimia nas letras tudo o que a alma lhe "falava".
Para melhor se exprimir, Pessoa criou heterónimos, versões do que seriam outros "Fernandos Pessoas", mas bastante diferentes, com personalidades completas e vincadas, evoluíndo e amadurecendo ao longo do tempo.

Álvaro de Campos, o engenheiro naval desiludido com a vida, Ricardo Reis, o médico monárquico que recusou a República, Alberto Caeiro, o camponês sem estudos, simplista e que recusava a metafísica e Bernardo Soares, o semi-heterónimo, na medida em que não diferia muito do escritor real, foram os heterónimos que Pessoa criou (e posteriormente, viria a "matar").

Entre as suas obras, destaque ainda para o livro Mensagem, no qual o autor relembra as glórias passadas de Portugal (em especial a época dos descobrimentos), avalia o estado da Nação e preconiza soluções para o futuro, profetizando até o surgimento do "Quinto Império".
Legado para a História

Fernando Pessoa começou como tradutor, dada a sua facilidade com a língua inglesa, mas foi também jornalista e um dos principais impulsionadores das revistas de poesia em Portugal, tendo ajudado a criar e a lançar a revista Águia (1912), que não durou muito tempo, mas o bastante para trabalhar as suas ideias.

As suas obras e legado foram influências para diversos outros artistas ao longo das últimas décadas, desde a escrita, por exemplo através de José Saramago, até à música, com os Moonspell a basearem-se no seu "Opiário" para uma das suas canções.
Viria a morrer em 30 de Novembro de 1935, na "companhia" dos seus heterónimos e sem ver reconhecida a grandeza que o tempo lhe viria a conceder.

Espólio de Pessoa na Internet

O projecto ambicioso de digitalização de material pessoano poderá vir a ser disponibilizado na página oficial da Casa Fernando Pessoa.
Portugal celebra os 120 anos do nascimento de um dos maiores vultos da cultura e literatura nacionais.Um ambicioso projecto de digitalização de materiais pessoanos poderá abrir novos horizontes para o conhecimento da sua obra além fronteiras. São mais de 1000 livros e cerca de 2300 papéis do espólio do escritor que poderão vir a ser digitalizados e publicados na Internet, informa o "Público". O projecto conta com o apoio da câmara municipal de Lisboa e da Casa Fernando Pessoa.Porém, por resolver está ainda a polémica que opõe a família do poeta e o Estado português sobre o leilão, em Outubro, de valiosos manuscritos e textos inéditos. Existem ainda cerca de 150 livros e revistas na posse dos herdeiros de Pessoa e que não fazem parte do acervo da Casa Fernando Pessoa.
Informação Adicional:

Tabacaria

Não sou nada.

Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é

(E se soubessem quem é, o que saberiam?),

Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.

Saio da janela, sento-me numa cadeira.

Em que hei de pensar?


Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso?
Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!

Génio?
Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...

Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas
-Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -

,E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?

O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim?
Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantarmos da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.

Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.
(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos
invoco a mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,

E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.

Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso:
talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo

E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente
Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.

O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo

E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,

E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira.
Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe "Adeus ó Esteves!",
e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança,
e o Dono da Tabacaria sorriu.


Álvaro de Campos, 15-1-1928

Liberdade




Ai que prazer
não cumprir um dever.
Ter um livro para ler
e não o fazer!
Ler é maçada,
estudar é nada.
O sol doira sem literatura.
O rio corre bem ou mal,
sem edição original.
E a brisa, essa, de tão naturalmente matinal
como tem tempo, não tem pressa...
Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.
Quanto melhor é quando há bruma.
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!
Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol que peca
Só quando, em vez de criar, seca.
E mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças,
Nem consta que tivesse biblioteca...

quinta-feira, 12 de junho de 2008

Fernando Pessoa/120 anos: Em busca do "Pessoa sul-africano"



Joanesburgo, 12 Jun (Lusa) - Dez anos de vivência sul-africana nos anos da meninice e juventude marcados pela explosão do génio criativo, pelo nascimento dos primeiros heterónimos e por alguns prémios literários não parecem ter constituído património suficiente para que o poeta Fernando Pessoa conquistasse um lugar de direito nas letras sul-africanas.
Quando se comemoram os 120 anos do nascimento do poeta, alguns académicos sul-africanos e portugueses residentes no país e que se dedicaram ao estudo do "complexo português" admitem que Pessoa pouco mais é hoje, na África do Sul, do que um busto no liceu de Durban, onde estudou, e uma vaga memória para uma mão-cheia de eruditos.
David Bunyan, estudioso de Pessoa e professor catedrático na Universidade de Rhodes, em Grahamstown, confessa que "nunca foi capaz de convencer as pessoas de que Pessoa faz parte do universo sul-africano por uma miríade de razões".
Essas razões, refere Bunyan numa entrevista à Lusa, passam pelo envolvimento do então jovem poeta na problemática da Guerra Anglo-Boer, criticando asperamente o então secretário de Estado das colónias inglesas pelos campos de concentração onde os ingleses encarceraram os "boers" em pelo menos 2 obras (Liberty e Joseph Chamberlain), o nascimento do génio literário durante os seus "anos sul-africanos" e o facto de ter conquistado prémios literários no país, como o prestigioso "Queen Victoria Memorial Prize", em 1903, entre 899 candidatos.
"Pessoa fascinou-me desde sempre pela sua complexidade, e embora reconheça que os seus melhores trabalhos não foram escritos em inglês na fase de residência na África do Sul, o seu génio viverá para sempre neste país", explica David Bunyan.
Para Ana Margarida van Eck, directora do departamento de Português da Universidade de Witwatersrand, Joanesburgo, o peso da África do Sul na personalidade do poeta não pode ser ignorado, antes enaltecido.
"Também o extraordinário encantamento da obra multifacetada de Fernando Pessoa tem merecido a atenção minuciosa do vasto mundo literário. No universo académico sul-africano prevalece a corrente que defende a sua inclusão na categoria de produção poética de expressão inglesa deste país. Esta proposta assenta no facto de Pessoa ter aqui vivido os seus anos formativos e, consequentemente, ter sofrido profunda influência da literatura anglófona", salienta esta académica num ensaio escrito em 2002.
Van Eck acrescenta que foi "afinal, durante a sua permanência em Durban, que Fernando Pessoa criou, entre outros, os heterónimos Alexander Search e Charles Robert Anon e, sob este último nome, chegou mesmo a publicar um poema no jornal Natal Mercury".
Para esta académica, os referidos heterónimos "associam-se aos conceitos de Descoberta, por um lado, e de Anonimato, por outro, representando forças psíquicas de oposição, e que poderiam ter conduzido ao posterior surgimento de outros heterónimos, também eles caracterizados por estares acentuadamente contrários".
Bunyan insiste que Pessoa tem claramente lugar na categoria do Modernismo internacional e que o espaço sul-africano é, no caso do poeta português, o espaço de origem.
Se pensarmos que Pessoa residiu, estudou e criou em Durban, África do Sul, entre os 7 e os 17 anos (de 1895 a 1905), a sua influência, mesmo que esbatida e diluída por via dos ventos da História sul-africana, não deixa de ser notável.
Ele influenciou, segundo estudiosos locais, poetas sul-africanos como Charles Eglington e Stephen Gray, que o consideram mesmo "compatriota".
"Jennings, autor de um aturado estudo intitulado -Os 2 exílios - Fernando Pessoa na África do Sul`, ao procurar destrinçar a relevância que as línguas tiveram para Pessoa, ventila a ideia de o inglês estar associado ao intelecto, mas ter sido em português, na "clara língua majestosa", que se fez o coração deste poeta", salienta Ana Margarida van Eck.
Fernando Pessoa nasceu em Lisboa no dia 13 de Junho de 1888.

© 2008 LUSA - Agência de Notícias de Portugal, S.A.2008-06-12 13:50:02

Amanhã Fernando Pessoa completaria 120 anos. O poeta português, nascido em Lisboa, morreu bem antes de completá-los, aos 47 anos, em 1935. Morreu sozinho, abandonado em si mesmo, mas deixando uma obra vasta de outros, sejam os heterónimos que criou (os mais famosos Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos), sejam os leitores que saiu conquistando ao redor do mundo.

A 13 de Junho, tributo à alma estilhaçada e sem fronteiras



Fernando Pessoa nasceu em Lisboa em 13 de Junho de 1888 e morreu, só e doente, em 30 de Novembro de 1935. Foi sepultado no Cemitério dos Prazeres com o testemunho de cerca de 50 pessoas. No cinquentenário da sua morte foi transladado para o Mosteiro dos Jerónimos, a última morada concedida aos mais altos dignitários de Portugal, para junto daqueles que admirou: o sonhador e o martirizado, Vasco da Gama e Camões. «Mensagem» foi o livro da sua vida e o único que viu publicado em vida. A sua voz, impiedosamente denunciadora, e hoje tão actual, grita esta terra onde «tudo é nocturno e confuso», com «três espécies de Portugal, três espécies de português»: um começou com a nacionalidade, «é a forma e o fundo da nação, trabalha obscura e modestamente. Existe porque existe, e é por isso que a nação existe». O outro «é o português que o não é», o que governa o país, «mas divorciado do país que governa. Contra a sua vontade é estúpido». O terceiro é o «português que fez as Descobertas, o que sonhou, mas que se foi em Alcácer Quibir», deixando, porém, alguns parentes que intentam, ainda no sonho - são os portugueses que «projectam a fé», que procuram ideais.
Deixou-nos um acervo genial de palavras, multiplicadas pela sua heteronímia, marca de um indivíduo que não coube num só corpo nem numa só alma. A escrita de «Mensagem» foi iniciada a 21 de Julho de 1913, finalizada em 26 de Março de 1934 e posta à venda simbolicamente, em 1 de Dezembro desse ano.

Compreendida nos Conteúdos Programáticos do 12º ano nas escolas portuguesas, «Mensagem» foi há pouco reeditada, numa edição fac-similada do original, pela vetusta Parceria António Maria Pereira. A abrir, pelo cunho de Pessoa, a dedicatória com um abraço ao seu amigo António Maria Pereira. Para além desta emoção que nos proporciona a Parceria, há ainda outra: o magnífico «As Mensagens da Mensagem» de Nuno Hipólito, um livro belíssimo que anota e comenta, passo a passo os versos daquela obra maior que fala de nós, portugueses, místicos, sebásticos, doridos, indagadores e esperançosos.

«Tentei fazer um livro de simples leitura, mas que agradasse também aos mais eruditos e estudiosos de Pessoa. O objectivo era ter um livro que pudesse servir de consulta para os estudantes, bem como de referência para os que estudam o poeta», escreve Nuno Hipólito em Nota Prévia. A obra «As Mensagens da Mensagem (O Desvendar dos Mistérios)» é, até à data, a única publicada sobre a Mensagem de Fernando Pessoa que inclui análise estilística, análise de conteúdo estrofe a estrofe e análise contextual das implicações esotéricas, numerológicas e cabalísticas de cada um dos poemas», refere Paulo Pereira, o prefaciador, considerando, ainda ser esta obra «um objecto bibliográfico incontornável».

A acompanhar este trabalho estupendo e essencial a todos os portugueses, que aqui aplaudo, pode o leitor contar, também, com um CD com o texto integral.

«Eu nunca fiz senão sonhar»«Mensagem» é, também, a voz de um povo, uma raça que partiu em busca de uma Índia, que a tomou e perdeu. Porém, “todas as naus são de sonho logo que esteja em nós o poder de as sonhar”, ou “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce”. Expõe-se a dor, a nostalgia, a saudade, mas fomenta-se um devir com glória, com um olhar fito no mar, no horizonte, na esperança: “Sem a loucura que é o homem / Mais que a besta sadia, / Cadáver adiado que procria?”.

É preciso que a chama ilumine o herói, fecunde a realidade e faça com que a vida valha a pena ser vivida. E dá-nos o seu exemplo: “Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: Navegar é preciso; viver não é preciso. Quero para mim o espírito desta frase, transformada a forma para a casar com o que sou: viver não é necessário; o que é necessário é criar. Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso. Só quero torná-la grande, ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a minha alma lenha desse fogo”.

«Eu nunca fiz senão sonhar», escreveu Bernardo Soares, semi-heterónimo de Pessoa. E a mensagem final de Pessoa é que Portugal tem de se elevar através de uma espiritualidade forte, capaz de subjugar todas as adversidades. É um repto para se cumprir.


Mensagem, Fernando Pessoa; edição fac-símilada de 1934, Parceria A.M. Pereira, Lisboa 2007

As Mensagens da Mensagem – O Desvendar dos Mistérios, Nuno Hipólito; Parceria A.M. Pereira, Lisboa 2007


© Teresa Sá Couto

homenagem a Fernando Pessoa

POEMA DE CINZA

À memória de Fernando Pessoa

Se eu pudesse fazer com que viesses
Todos os dias, como antigamente,
Falar-me nessa lúcida visão –
Estranha, sensualíssima, mordente;
Se eu pudesse contar-te e tu me ouvisses
Meu pobre e grande e genial artista,
O que tem sido a vida – esta boémia
Coberta de farrapos e de estrelas,
Tristíssima, pedante, e contrafeita,
Desde que estes meus olhos numa névoa
De lágrimas te viram num caixão;
Se eu pudesse, Fernando, e tu me ouvisses
Voltávamos à mesma: Tu lá onde
Os astros e as divinas madrugadas
Noivam na luz eterna de um sorriso;
E eu, por aqui, vadio da descrença,
Tirando o meu chapéu aos homens de juízo...
Isto por cá vai indo como dantes;
O mesmo arremelgado idiotismo
Nuns Senhores que tu já conhecias
- Autênticos patifes bem falantes...
E a mesma intriga; as horas, os minutos,
As noites sempre iguais, os mesmos dias,
Tudo igual! Acordando e adormecendo
Na mesma côr, do mesmo lado, sempre
O mesmo ar e em tudo a mesma posição
De condenados, hirtos, a viver
Sem estímulo, sem fé, sem convicção...

Poetas, escutai-me! Transformemos
A nossa natural angústia de pensar –
Num cântico de sonho! E junto dele,
Do camarada raro que lembramos,
Fiquemos, uns momentos, a cantar!

António Boto

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Poemas de Fernando Pessoa -Fernando Pessoa

Cancioneiro -Fernando Pessoa

Mensagem -Fernando Pessoa

O Eu profundo e os outros Eus. -Fernando Pessoa

Do Livro do Desassossego -Fernando Pessoa

Poesias Inéditas -Fernando Pessoa

O pastor amoroso -Fernando Pessoa

Livro do Desassossego -Fernando Pessoa

O Guardador de Rebanhos -Fernando Pessoa

Poemas Traduzidos -Fernando Pessoa

Poemas de Álvaro de Campos -Fernando Pessoa

Cancioneiro -Fernando Pessoa

O Banqueiro Anarquista -Fernando Pessoa

Poemas de Álvaro de Campos -Fernando Pessoa

Poemas Inconjuntos -Fernando Pessoa

Primeiro Fausto -Fernando Pessoa

Poemas de Ricardo Reis -Fernando Pessoa

Poemas em Inglês -Fernando Pessoa

Poemas de Álvaro de Campos -Fernando Pessoa

O 8ª Poema de "O guardador de rebanhos"

Num meio-dia de fim de Primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.
Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu tudo era falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas
-Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque nem era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E que nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!
Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o Sol
E desceu no primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.
A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.
Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar para o chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou
-"Se é que ele as criou, do que duvido."
-"Ele diz por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres.
"E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa
.... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural.
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é por que ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre.
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.
A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.
A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direcção do meu olhar é o seu dedo apontado.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.
Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.
Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo o universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.
Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens
E ele sorri porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do Sol
A variar os montes e os vales
E a fazer doer aos olhos dos muros caiados.
Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.
Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono
.... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam ?

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Notícias breves de Cultura

Almada
A Companhia de Dança de Almada estreia dia 13 de Junho, no Teatro Municipal de Almada, o Programa da Temporada 2008 com a nova criação Eu "not" Pessoa, da coreógrafa Rita Galo.
"I know not what tomorrow will bring", verso de Fernando Pessoa, é o ponto de partida para uma coreografia onde se exploram quatro personalidades dentro do mesmo ser.
Rita Galo, coreógrafa e bailarina, é também autora do trabalho "Submersão do Meu Ser", apresentado em diversas salas nacionais e internacionais.
Lusa

Mário Cláudio lança livro sobre heterónimo de Fernando Pessoa

"Boa noite, Senhor Soares" é o novo livro de Mário Cláudio sobre a adolescência de Bernardo Soares, um dos heterónimos de Fernando Pessoa.Ao Rádio Clube, o escritor descreve a personagem principal como "uma figura sobre a qual é sempre possível inventar coisas novas".Para escrever sobre a Bernardo Soares, Mário Cláudio diz que fez pouca pesquisa, baseou-se, sobretudo, no "Livro do Desassossego" do heterónimo de Feranndo Pessoa."Boa Noite, Senhor Soares", de Mário Cláudio, é apresentado esta tarde num dos cafés lisboetas mais frequentados por Fernando Pessoa, o café Martinho da Arcada.

“Crítica Literária” de Fernando Pessoa é o “Livro do Mês” de Junho na Biblioteca Municipal do Barreiro


A obra “Crítica Literária”, de Fernando Pessoa, com selecção e prefácio de Hélio Alves, editado pela Caleidoscópio, é o “Livro de Mês” de Junho na Biblioteca Municipal do Barreiro.
Fernando Pessoa (Lisboa, 1888-1935)Em Junho, assinala-se o aniversário do nascimento do mais consensual poeta português. O poeta nasceu há 120 anos. Poucos escritores serão tão consensuais como Fernando Pessoa. Ainda hoje, 120 anos depois do seu nascimento e mais de 70 da sua morte, surgem textos, interpretações, novos caminhos na sua obra.«Extraordinário poeta e uma das personalidades mais complexas e representativas da literatura europeia do séc. XX.Retraído, com vocação para viver isolado, sem compromissos, sempre disponível para as aventuras do espírito, trabalha desde 1908 até à sua morte, como correspondente comercial de várias firmas.Desde os treze anos escreve poesias em inglês; mas é como ensaísta que primeiro se revela, ao publicar, em 1912, na revista “A Águia” uma série de artigos sobre “a nova poesia portuguesa”. Entretanto, continua a compor poesia em inglês (são de 1913 os “35 Sonnets” e o “Epithalamium”), e em português (segundo o autor, em 1908, “num impulso súbito”, resultante da leitura das “Flores sem Fruto” e das “Folhas Caídas”, de Almeida Garrett, começou a escrever versos nesta língua).Afastando-se do grupo saudosista, ávido de novos rumos estéticos e de fazer pulsar a literatura portuguesa ao ritmo europeu, vai ser um dos introdutores do Modernismo em Portugal, com Sá Carneiro, Almada, Raul Leal e outros.O ano de 1914 fica, na biografia interior do poeta, como decisivo, pelo aparecimento dos principais heterónimos, Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis. Fernando Pessoa chegou a inventar biografias, retratos físicos e horóscopos para os três primeiros heterónimos, a fim de melhor os definir.Em relação aos heterónimos, o Pessoa ortónimo distingue-se por traços peculiares: avesso ao sentimentalismo, as suas finas emoções são pensadas, ou já são vibrações da inteligência, vivências de estados imaginários: “Eu simplesmente sinto/Com a imaginação./Não uso o coração”. Com musical suavidade, em breves poesias de metro geralmente curto, e através de símbolos consagrados (a noite, o rio, o mar, a brisa, a fonte, as rosas, o azul), mais raro de cunho moderno (o andaime, o cais), fiel à tradição poética “lusitana”, e não longe, por vezes da quadra popular, Pessoa exprime ou insinua a solidão interior, a inquietação perante o enigma indecifrável do mundo, o tédio, a falta de impulsos afectivos de quem, minado pelo demónio da análise, já nada espera da vida – ou então os vagos acenos do inefável, o breve acordar da infância, a magia da voz que se cala, mal o poeta se põe a escutar.»In Dicionário de Literatura Portuguesa, dirigido por JP. Coelho, Liv. Figueirinhas, Porto (texto adaptado)«Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não sei, bem entendido, se realmente não existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas coisas, como em todas, não devemos ser dogmáticos.)»Fernando Pessoa, Carta a Adolfo Casais Monteiro, Lisboa, 13 de Janeiro de 1935.

Pessoa/120 anos: Presença do poeta nas artes plásticas é mais do que óculos, chapéu e bigode

**Ana Goulão, da Agência Lusa**


Lisboa, 07 Jun (Lusa) - Fernando Pessoa tem sido evocado nas artes plásticas "até à exaustão" com o seu chapéu, óculos e bigode, mas a identidade da arte portuguesa pode ter sido influenciada de forma mais profunda e inconsciente pela própria heteronímia pessoana.

O chapéu, o bigodinho, os óculos e o laço são sem dúvida os elementos que identificam o rosto de Fernando Pessoa (1888-1935) em inúmeras obras de artistas plásticos de várias gerações, inspirados pela grandeza da obra do poeta, nascido há 120 anos.

Existem as "incontornáveis" obras plásticas emblemáticas que o imortalizaram, e Almada Negreiros é disso exemplo, quando, no dia da morte de Pessoa, "fez um desenho rápido para o Diário de Lisboa, e a partir daí a cara que se passa a ver pintada é sempre a mesma", observou, em declarações à Agência Lusa, o crítico de arte Rui Mário Gonçalves.

O rosto anguloso de Fernando Pessoa, com os óculos, o chapéu e o bigode passam a ser os elementos figurativos que o identificam e foram "reproduzidos até à exaustão", criando até algumas "imagens anedóticas", na opinião do crítico de arte.

Existem também dois quadros pintados a título póstumo por Almada Negreiros - seu amigo e contemporâneo, também fundador do movimento modernista - que mostram o poeta a fumar sentado a uma mesa de café, com uma bica, um bagaço, papel e caneta, "companhias habituais".

Ao longo do tempo, o autor de "Mensagem" também inspirou artistas a criar obras mais abstractas em sua homenagem, como foi o caso de Maria Helena Vieira da Silva, assinalou o crítico de arte.

"Não nos podemos esquecer de que a verdadeira paixão pelo Fernando Pessoa nasceu nos anos 40. Anteriormente só alguns o liam. Agora é de leitura obrigatória. Tal como o Eça de Queiroz", comentou ainda Rui Mário Gonçalves.

Mas Alberto Cutileiro, João Luiz Roth, Mário Botas, Carlos Calvet, Bartolomeu Cid dos Santos, Eurico Gonçalves, Alfredo Margarido, António Dacosta, Jorge Martins, José João Brito, José de Guimarães (em pintura e escultura), foram alguns dos artistas que não quiseram deixar de representar Fernando Pessoa ou os seus heterónimos como a popular figura de chapéu, bigode e óculos.

O pintor Costa Pinheiro é "outro artista incontornável" na representação do poeta. Trabalhou a figura de Pessoa na tela sobretudo nos anos 70 e 80, nomeadamente com o famoso quadro "Fernando Pessoa e os seus Heterónimos".

Júlio Pomar retratou o poeta em vários desenhos com o seu inconfundível traço, expostos, por exemplo, nos painéis de azulejos concebidos para a estação de metro Alto dos Moinhos, em Lisboa, onde milhares de pessoas se "cruzam" com Pessoa diariamente.

Ainda no domínio da arte pública, Fernando Pessoa foi imortalizado pelo escultor Lagoa Henriques, sentado a uma mesa de café em frente à "A Brasileira", no Chiado, onde portugueses e estrangeiros gostam de fotografar-se na sua companhia.

Para o director do Museu de Arte Contemporânea de Elvas e também crítico de arte João Pinharanda, o que mais importa salientar da influência do poeta português nas artes plásticas "é a lição de heteronímia que Fernando Pessoa representa".

João Pinharanda acredita que o assumir de várias personagens é uma ideia que atravessa a criação artística portuguesa. "A arte portuguesa é muito heteronímica. Não quer dizer que isto seja consciente nos artistas. É algo que está no inconsciente", defende, em declarações à Lusa.

"Parece - considera ainda - que quando olhamos para a arte portuguesa não conseguimos fazer um fio condutor. Cada artista aparece isolado do outro. A arte portuguesa é, por um lado, muito rica, plural, mas, por outro, tem grande dificuldade de afirmação".

Pessoa/120 anos: Antologia visa aproximar mais cedo os mais novos da poesia de Fernando Pessoa

Lisboa, 08 Jun (Lusa) - A antologia "Poesia de Fernando Pessoa para todos", organizada por José António Gomes com ilustrações de António Modesto, visa "aproximar mais cedo os mais novos" do poeta da "Mensagem".
tamanho da letra



Com a chancela da Porto Editora, esta antologia é editada no âmbito dos 120 anos do nascimento do escritor, reunindo cerca de 30 poemas seus.
Em declarações à Lusa, José António Gomes afirmou que esta antologia "visa aproximar mais cedo dos mais novos a poesia de Pessoa".
"O próprio Pessoa escreveu alguns poemas às suas sobrinhas, um destinatário infantil, mas há outros poemas seus, simples e compreensíveis pelos mais novos, com uma estrutura lírico-dramático", explicou José António Gomes.
O investigador salientou as ilustrações e o design de António Modesto, "marcados por um estilo que lembra aqui e ali as vanguardas históricas do princípio do século XX, o período de actividade de Pessoa".
"Há referências a Amadeo de Souza-Cardoso e ao cubismo", acrescentou.
A antologia inclui, entre outros, "Poema pial", "Ó sino da minha aldeia", "A fada das crianças" e "Liberdade", num total de 27 poemas, na sua maioria de autoria de Fernando Pessoa, mas incluindo dois heterónimos.
De Ricardo Reis escolheu a ode "Para ser grande sê inteiro" e de Álvaro de Campos "Todas as cartas de amor são ridículas".
Segundo José António Gomes, professor na Escola Superior de Educação do Porto, "Fernando Pessoa é dos poetas mais conhecidos e lidos", mas pode-se ainda "aproximá-lo dos mais novos, logo na escola primária e no 2º ciclo".
Ilustrador e o antologista estarão na próxima quinta-feira, 13 de Junho, dia do aniversário de Fernando Pessoa, na Feira do Livro de Lisboa, a cidade onde nasceu.
O livro integra a colecção "Oficina dos Sonhos", um projecto da Porto Editora que visa "reunir clássicos da literatura infantil e juvenil, obras contemporâneas de grandes autores e ilustradores portugueses ou estrangeiros, e álbuns para os mais pequenos", segundo fonte editorial.
© 2008 LUSA - Agência de Notícias de Portugal, S.A.2008-06-08 10:05:03

Pessoa segundo a família

Tímido. Reservado. Apenas nas fotografias. Na intimidade, Pessoa era uma pessoa diferente. Divertido e terno. Sempre surpreendente. 120 anos sobre o seu nascimento, a família e a sobrinha da enamorada, Ofélia, reavivam as memórias do poeta de Portugal
Ao morrer pediu os óculos. Não que pretendesse fintar a escuridão da agonia. Quis escrever. 'I know not what tomorrow will bring' [Não sei o que o futuro me trará]. Quando o Poeta nasceu, o céu dera-lhe o clarão do astro-rei na posição dos génios; Sol em Gémeos. Fernando António Nogueira Pessoa, geminiano, ascendente Escorpião, viu o Mundo às 15h20 de 13 de Junho de 1888, no quarto andar esquerdo da porta 4 do largo de São Carlos, Lisboa. Se o corpo fosse eterno como a sua obra, faria 120 anos no dia de Santo António, cuja especialidade é a de abençoar casamentos. A lenda com o fundador da revista ‘Orpheu’ não fez efeito. Nunca casou. 'Ele não queria, ao contrário da minha tia, que desejou bastante que tal acontecesse'. Graça Queiroz, 64 anos, secretária do presidente do INATEL, não esquece os suspiros da sua tia-avó, Ofélia, a senhora com quem Fernando Pessoa manteve, ao que se sabe, o único romance. 'A minha tia sempre me disse que tinha vivido um grande amor, e sentia um grande desgosto pela sua morte ter sido tão prematura'.
A amada faleceu em 1991, sem descendentes, num lar, viúva de um matrimónio onde a chama do amor nunca acendeu. Casara em 1938, três anos após a morte do seu mais que tudo, com Augusto Soares, figura do Teatro.
'Eu tinha treze anos quando a minha tia entregou-me uma caixa. Lá dentro estavam as cartas que o Fernando lhe enviara e recordações'. Em 1978, com o seu consentimento, Graça edita o que vive naquela caixa, pequena, que guarda afectos grandes. Missivas de amor. Amor adulto expresso em dialecto carinhoso pueril. 'Meu amorzinho, meu bebé querido, minha bonequinha, meu Íbis, meu ninho.' O Poeta mimava a namorada. Em diminutivos e com presentes. Um porta-retrato. A pulseira que, apesar de ter andado perdida, voltou ao destino. O cachimbo, mordido de tanta nicotina. A filha de Carlos Queiroz, grande amigo de Fernando Pessoa, recorda a senhora risonha, dotada de uma força de vontade admirável, uma mulher acelerada para a época. 'Mesmo contra a vontade da família ela decidiu procurar emprego'. Em boa hora. Foi no escritório Félix Valladas e Freitas, onde ambos trabalhavam, que a paixão irrompeu a 1 de Março de 1920. Ofélia tinha 19 anos e o Poeta, ciumento de franzir a testa a decotes, 31 anos. Namoravam às escondidas, já que nunca quis pedir autorização aos pais da jovem.
'Basta-me que eu te ame e que tu me ames. E não precisamos de nada mais'. Apenas precisava de descobrir o trajecto do eléctrico mais longo para que o idílio durasse mais tempo. 'O namoro intenso, de certa forma alegre, não foi apenas platónico.' Em um dos seus ataques de afecto ardente, Fernando Pessoa, na rua de São Bento, empurrou a sua querida para o vão de uma escada. Agarrou-a. Beijou-a. A 29 de Novembro desse ano chega a última carta. Deprimido, não consegue pensar numa existência a dois. Após nove anos, Carlos Queiroz mostrou à sobrinha a fotografia de Fernando Pessoa a beber no Abel Pereira da Fonseca. Ofélia achou piada. Pediu ao tio para que lhe arranjasse uma foto. O recado foi dado e Pessoa enviou-lhe uma igual com a célebre dedicatória: 'Fernando Pessoa em flagrante delitro.' O namoro reatou. 'Havia ocasiões em que Fernando Pessoa dizia-lhe que quem ali estava não era ele, mas um de os seus heterónimos'. Ofélia gostava de todos, menos de Álvaro Campos.
Previsão certeira. O poema 'Todas as Cartas de Amor são Ridículas', de Outubro de 1935, é da sua autoria. Muito antes, em 1930, o Poeta avisara-a que por ele esperavam outros mestres. Dá-se a separação, mas, Graça realça 'os dois sempre mantiveram contacto. Inclusive, tenho o telegrama de parabéns que enviou à minha tia no ano em que faleceu'. A coincidência da data em que viram a luz da vida é curiosa. Ofélia nasceu no dia a seguir ao amado, a 14 de Junho de 1900.
O ano de nascimento de Manuela Nogueira, filha de Henriqueta Madalena, irmã de Fernando Pessoa, é marcado por tragédias. Em 1925 morre a mãe do Poeta, a sobrinha e outros familiares. 'Em consequência de tantas mortes, fui com os meus pais viver para a casa do meu tio Fernando.' Na rua Coelho da Rocha, número 16, em Campo de Ourique. As lembranças que a escritora e discípula do mestre Lima de Freitas guarda do tio são espontâneas: 'Ele era uma pessoa muito divertida. Tinha um sentido de humor formidável'. À hora do almoço, Manuela ia à janela esperar que o tio chegasse. Quando ele aparecia, o ritual não falhava. Cumprimentava o candeeiro. Dava passos largos. Fingia tropeçar. 'A minha mãe ralhava-lhe. Advertia-o que as pessoas iriam pensar que ele endoidecera'. Não se importava. Ainda agravava a fama ao simular quedas pelas escadas. Passaram muitas décadas, mas a memória não apaga. Livros. Papéis. Inundavam a casa de jantar. O tio a ler. A escrever. No quarto. A arca onde os versos iam cabendo. Um passeio à Baixa lisboeta e uma ida à praia de São João do Estoril. 'O meu tio ficou vestido de fato e não descalçou os sapatos'. O único calçado na areia era o seu tio. Querido. Mentor de brincadeiras que ainda hoje sente o gosto. 'Pedia-me para eu lhe arranjar as unhas e lhe fazer a barba'. Em troca, o tio dava duas moedas, as suficientes para que a sobrinha fosse a correr comprar uma barra de chocolate. 'Ele adorava crianças!'
A notícia da morte chegou como uma bala seca no peito. 'Estranhámos que no dia do aniversário da minha mãe ele não tivesse aparecido na nossa casa de São João do Estoril'. O telegrama de parabéns recebido a 27 de Novembro não sossegou a irmã do Poeta. Para agravar a aflição, na véspera, o País tinha sido abalado por um ciclone que avariou as linhas telefónicas. Perante tal desespero 'o meu pai decidiu ir à procura do meu tio e foi para Lisboa'. Chegado à rua Coelho da Rocha, os vizinhos, familiares de Jorge de Sena, contaram-lhe que Fernando Pessoa se encontrava internado. As pernas do oficial do exército voaram até ao Hospital de São Luís. Depois de o ver ficou tranquilo. O cunhado aparentava sofrer de uma mal-estar fugaz. Manuela não se lembra de que maneira soube que o Fernando Pessoa já era cadáver, mas tem presente a tristeza que trouxe esse dia 30 de Novembro de 1935. Ainda hoje, com 83 anos, ao falar da perda do seu tio, nosso Poeta, os seus olhos alargam de emoção. Na sua sala só falta que ele entre e diga que os mortos sabem regressar. Retratos. Livros. Manuscritos. Objectos pessoais. Encarnam a sua presença.
Fernando Pessoa morreu de colite hepática no Hospital de São Luís, em Lisboa, a mesma unidade hospitalar onde Luís Miguel Rosa Dias, seu sobrinho e irmão de Manuela, exerce medicina. 'Lembro-me de algumas coisas, mas o que tenho mais em mente é de o meu tio ser uma pessoa divertidíssima'. Luís era uma criança. Pequena. Nascera a 1931. As imagens são escassas. Mas um tio da casta de Pessoa é capaz de desafiar o divã de um psicanalista. Entre meia dúzia de episódios, como o de receber presentes ao almoço, há um inesquecível. Despertara-lhe a atenção um garrafão de vinho e, por mera gulodice, cumpriu a curiosidade: 'Destapei-o e lambi a rolha'. O tio, de imediato, reagiu à sua cara de satisfação: 'Temos homem!' Nas fotografias, é verdade, mostra um ar sério, muito sério, carregado para a idade, mas Fernando Pessoa, grande, enorme, poeta, ensaísta, escritor, pensador, espiritual, um ser com várias vidas, era, garante Luís, uma criatura com magnificente sentido de humor. Em 1988, quando os seus restos mortais foram transladados do cemitério dos Prazeres para o Mosteiro dos Jerónimos, foi Luís quem representou a família no momento da urna ser retirada do jazigo. Contrariando uma notícia anunciada na altura, em que se mexericava que o corpo de Fernando Pessoa permanecia intacto, fica o testemunho: 'Eu estava presente com o elemento da agência funerária, e posso afirmar que o caixão não chegou a ser aberto'. Não se pode adivinhar qual teria sido a escolha de Fernando Pessoa, se o próprio pudesse eleger a sua morada final. Certamente o lugar onde repousa o corpo não seria a sua prioridade.
O corpo era, é o adorno da alma. O Estado Português quis enobrecê-lo e colocou-o a lado de Luís Vaz de Camões. 'É uma pena que Portugal só honre os mortos. É preciso morrer para se ter o devido valor.' Em vida, Fernando Pessoa, à parte de ter sido publicado em jornais e revistas, apenas viu editado, em 1934, 'Mensagem' e as colectâneas de poemas ingleses. Ainda o choque da sua perda estava quente nos corações dos familiares e amigos, Luís não esquece a promessa da sua mãe: enquanto a obra de um dos maiores poetas da Língua Portuguesa não obtivesse o mérito merecido, ela não descansava. Quando descansou de vez, em 1992, deixou aos filhos um legado incalculável. Apesar de a obra estar entregue a instituições nacionais, ainda há documentos, livros, cartas, revistas e fotografias de Fernando Pessoa que estão em poder dos seus herdeiros, e que irão, ainda este ano, a leilão na Galeria pela P4 Photography. Não faltarão interessados. 'O ideal seria a aquisição vir da Biblioteca Nacional, entidade que também detém espólio do meu tio'. Mais do que ideal, será um dever.
Miriam Assor

Pessoa/120 anos: Poemas do poeta heteronímico musicados na Rússia e na Estónia

2008-06-09 10:00:00
**José Milhazes, da agência Lusa**
Moscovo, 09 Jun (Lusa) - Fernando Pessoa é um dos raros poetas portugueses com poemas transpostos para obras musicais por compositores do Leste da Europa.
Por exemplo, Konstantin Nikolski, um dos "monstros do rock russo" dos anos 80 do século XX, musicou e interpretou alguns poemas pessoanos.
No ano passado, depois de um intervalo de mais de 15 anos, editou o álbum "Ilusões", cujo título foi buscar ao poema de Fernando Pessoa "O sono - Oh, ilusão! - o sono? Quem".
Musicou ainda dois outros poemas do autor de "Mensagem": "Entre o sono e o sonho" e "Vida minha, de onde vens e para onde vais".
"Nos anos 90, pouco antes da edição do álbum "Vagueio sem caminho", a minha mulher ofereceu-me, no dia de adversário, uma colectânea com a dedicatória: "Lê, penso que isto é para ti". As canções surgiram logo que comecei a ler esses poemas surpreendentes", recorda Konstantin Nikolski.
"Eu penso que não é preciso compor música para os poemas, porque ela já está neles contida. O principal é adivinhar", observa.
Para o conhecimento da obra de Fernando Pessoa na Rússia contribui também a popularidade do grupo musical português Moonspell, principalmente pela sua composição "Opiário", sobre versos do poeta.
O cantor russo Boris Vitrov interpreta "Canção antiga na taberna vizinha", com letra de Fernando Pessoa e música de Robert Michaels.
Também em língua russa canta-se o poema "Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio", do heterónimo Ricardo Reis.
O poema "Ó sino da minha aldeia", traduzido para estónio por Ain Kaalep, foi musicado em 1978 por Vejlo Tormis, um dos mais conhecidos compositores estónios contemporâneos.
Em 2005, as actrizes e cantoras estónias interpretaram essa canção para o disco "Laulud" (Canções).
A poesia de Fernando Pessoa cativou também Veljo Tormis, um dos mais conhecidos compositores estónios.
No início de 2008, foi editado um CD com obras do autor, entre elas o "Concerto para Coro Misto, Declamação e Sino", baseado no poema de Fernando Pessoa "Ó sino da minha aldeia"".
É de assinalar que essas obras são interpretadas pelo coro de música religiosa ortodoxa "Cantores Ortodoxos", sob a direcção do maestro Valeri Petrov.
Versos de Fernando Pessoa servem de mote ao filme estónio "Sugisball" (Baile de Outono), do realizador Veiko Õunpuu, obra galardoada com o prémio Venice Horizon Award do Festival de Veneza de 2007.
O filme começa com os versos do poema "Tabacaria" - "Fiz de mim o que não soube /E o que podia fazer de mim não o fiz" - ditos repetidas vezes pela personagem principal.
Lusa/fim

Pessoa é o maior autor luso no Brasil, diz especialista

Brasília, 10 Jun (Lusa) - Nenhum outro autor português ultrapassa no Brasil a presença e a importância de Fernando Pessoa, disse à Agência Lusa a especialista brasileira em literatura portuguesa Cleonice Berardinelli."Não há um único autor mais ou menos contemporâneo com uma influência tão grande quanto Pessoa", afirmou a professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro.Aos 90 anos, Cleonice Berardinelli, orientadora de mais de cem teses e dissertações de doutorado e mestrado, lembrou que Pessoa foi incluído no "Cânone Ocidental", do norte-americano Harold Bloom.Neste livro, em que o crítico literário mais popular do mundo destaca o que há de fundamental na história da literatura do Ocidente, Pessoa é considerado o mais representativo poeta do século 20, ao lado de Pablo Neruda."Na minha visão, Fernando Pessoa é um dos maiores poetas com os quais convivo. As suas potencialidades são imensas, quase infinitas", declarou Cleonice, que dedicou sua vida ao estudo e à divulgação da cultura portuguesa."Autor reverenciado"Na avaliação da especialista, que recebeu o título de doutora honoris causa da Universidade de Lisboa, Pessoa é "novo ainda hoje"."Ler Fernando Pessoa é sempre uma nova descoberta. A sua originalidade impressiona. Na verdade, são quatro poetas a escrever", disse Cleonice, em alusão aos heterônimos do escritor. "O texto é que cria o seu autor. O que Fernando Pessoa cria são textos e esses textos criam os poetas".Cleonice Berardinelli só veio conhecer a obra desse grande poeta português em 1945, quando já era formada, por intermédio do escritor e professor brasileiro Thiers Martins Moreira que, segundo ela, foi o introdutor da poesia de Pessoa no Brasil."A partir desta época passamos a dar cursos sobre Fernando Pessoa, e os alunos surpreenderam-se. A maneira intensa de Pessoa assustou-nos num primeiro momento, mas hoje é um autor reverenciado no Brasil", ressaltou a professora, destacando o papel das universidades brasileiras na difusão da obra do poeta.InfluênciaPara o professor, escritor e crítico Domício Proença Filho, que ocupa a cadeira número 28 da Academia Brasileira de Letras, Pessoa exerceu uma grande influência na poesia brasileira."Como poeta, faço parte de uma geração bastante influenciada por Pessoa. Insiro-me como um dos seus grandes admiradores e a minha poesia beneficiou muito da sua obra", disse Domício Proença à Agência Lusa.O acadêmico lembrou que Fernando Pessoa passou a ter uma presença muito forte no Brasil na década de 1960, inclusive com a sua inclusão na grade curricular da cadeira de literatura portuguesa."Todos os seus heterônimos foram muitos divulgados no Brasil", afirmou Domício Proença, em referência aos diferentes "eus" que se manifestaram da genialidade do poeta.

Falta verba à Casa Fernando Pessoa

A directora da Casa Fernando Pessoa, Inês Pedrosa, pediu ao presidente da Câmara Municipal de Lisboa, António Costa, para que a entidade seja transformada em fundação municipal, visto que isso permitiria contabilidade própria e a aplicação das receitas que consegue fazer.
Esta é a solução, segundo declarações de Inês Pedrosa ao CM, para responder às dificuldades financeiras com que se debate a Casa Fernando Pessoa numa altura em que decorrem as comemorações do 120º aniversário do escritor, nascido a 13 de Junho de 1888. No encontro, realizado há menos de um mês, esteve, além de António Costa – que terá mostrado disponibilidade para estudar a mudança de estatuto –, a vereadora da Cultura, Rosália Vargas.
PAPEL HIGIÉNICO
Apesar desta reivindicação, Inês Pedrosa salienta ter "todo o apoio da Direcção Municipal de Cultura", patente em aspectos tão caricatos quanto a cedência de toalhas de papel para as casas de banho da Casa Fernando Pessoa. "Enviaram 25 rolos de papel higiénico em Fevereiro e disseram que era para durar até final de Maio", lembra a escritora, que no início deste ano substituiu Francisco José Viegas.
Perante um orçamento de apenas 35 mil euros para todas as actividades ao longo deste ano, a programação do 120º aniversário de Fernando Pessoa só não se ressentiu devido ao apoio do grupo editorial Leya – que financiou uma série de filmes que estão a ser exibidos pela RTP – e à boa-vontade dos funcionários, que trabalham por sistema para lá do horário e sem remuneração extra, e de particulares. Inês Pedrosa lembra mesmo o caso de uma empresa que preferiu oferecer a impressão de um catálogo do que "acrescentar uns números à dívida da Câmara de Lisboa".
POEMAS NA VERSÃO HIP HOP
Uma das iniciativas com que a Casa Fernando Pessoa assinala os 120 anos do nascimento do poeta é o concerto ‘Hip Hop Pessoa’, marcado para sexta-feira no Terreiro do Paço, a partir das 22h00. Além da participação de figuras do hip hop nacional como Melo D., Maze e Fuse (ambos dos Dealema), Raptor ou Rocky Marsiano a musicar poemas do heterónimo Álvaro de Campos, o evento, que resulta de uma colaboração com a editora discográfica Loop: Recordings (que deverá lançar um álbum de homenagem ao poeta em Setembro), prevê, a partir das 18h00, a pintura de grafittis alusivos à iconografia pessoana. Segundo Inês Pedrosa, pretendeu-se "uma actividade que atingisse os mais jovens".
Leonardo Ralha

Directora da Casa Fernando Pessoa em entrevista a propósito dos 120 anos sobre o nascimento do poeta

Inês Pedrosa quer “levar Pessoa aos portugueses e não apenas aos lisboetas” O marco de um século e duas décadas sobre o nascimento de Pessoa está a merecer do país – e não apenas de Lisboa – a atenção merecida? Infelizmente não. Não tenho conhecimento de qualquer comemoração a nível nacional, a não ser o programa «Pessoa, Pessoas», que passa agora na RTP, concebido e filmado na Casa Fernando Pessoa e realizado com inexcedível brilho (e muita generosidade) por uma equipa dirigida por Elvis Veiguinha. Sentimo-nos na obrigação de levar Pessoa aos portugueses, e não apenas aos lisboetas. E o programa só foi possível por uma fantástica reunião de boas-vontades – a começar pela disponibilidade das muitas figuras públicas que aceitaram dar o seu tempo e a sua imagem a esta causa. Lastimo que o Governo não tenha até agora demonstrado qualquer interesse na promoção de Fernando Pessoa. A Casa Fernando Pessoa tem sido projectada mais pelo reconhecimento público das personalidades que têm estado à sua frente do que pelas actividades desenvolvidas, já que as verbas disponibilizadas não chegam para um verdadeiro programa de actividades. Quando tomou posse, falou na intenção de captar novas fontes de financiamento. Como é que esse projecto está a decorrer? O dinheiro faz falta, mas não é tudo. O amor pela obra pessoana e o reconhecimento do excelente serviço prestado pela equipa de funcionários da Casa Fernando Pessoa ao longo destes 15 anos de existência levou a que uma equipa de investigadores de várias nacionalidades, coordenada pelo Prof. Doutor Jerónimo Pizarro, se oferecesse para proceder, a título completamente gratuito, à digitalização da Biblioteca de Fernando Pessoa, que é o tesouro da Casa, porque Pessoa tinha o hábito de escrever a lápis nos livros que ia lendo. Esta digitalização nunca tinha sido possível porque o orçamento pedido pela Biblioteca Nacional para o realizar era incomportável. Logo que cheguei à Casa recebi esta generosa oferta, e, deste modo, a biblioteca tem estado a ser digitalizada na Casa, com os scanners e máquinas fotográficas dos próprios investigadores, que me disseram estar gratos ao modo como, ao longo dos anos, aqui foram recebidos. O Prof. Dr. Jerónimo Pizarro responsabilizou-se ainda gratuitamente pela organização de um ciclo de conferências, «Fernando Pessoa, O Guardador de Papéis», que decorrem na Casa todas as quartas feiras do mês de Junho e a primeira de Julho, às 18h30. Quando cheguei, em Fevereiro, fiz uma série de contactos no sentido de encontrar patrocínios rápidos, e consegui fazer um protocolo com o grupo Leya, o grupo editorial que me edita, nos seguintes e claríssimos termos: a Leya apoia qualquer actividade que a Casa Fernando Pessoa lhe proponha, até um determinado montante. Significa isto que enviamos para a Leya as facturas desses eventos – é importante realçar este aspecto para que se entenda que a verba concedida pela Leya não chega às minhas mãos, nem às de qualquer outra pessoa na Casa. Tive outras e mais chorudas propostas, mas de entidades que pretendiam indexar a imagem de Pessoa e os conteúdos da Casa às suas marcas e aos seus interesses –e isso nunca permitirei. Assim, pudemos organizar a primeira edição do festival «Letras em Lisboa», em parceria com o Forum das Letras de Ouro Preto (Brasil), pudemos criar e montar, em tempo recorde, a exposição «Os Lugares de Pessoa» (patente até Setembro), pudemos encenar a belíssima «Carta da Corcunda ao Serralheiro», do único semi-heterónimo feminino de Pessoa, Maria José, com interpretação de Ângela Pinto (que estará em cena nos próximos dias 18, 19 e 20), e pudemos fazer a série de programas «Pessoa, Pessoas», que a RTP está a emitir diariamente, durante todo este mês. Mas este apoio está a acabar, e precisamos urgentemente de outros. Estou a trabalhar para isso. Aproveito para deixar o apelo às empresas portuguesas, ou a mecenas individuais. A Direcção Municipal de Cultura, de que a Casa depende, conseguiu ampliar o nosso orçamento inicial de 15 mil para 35 mil euros anuais – mas, como se sabe, a Câmara enfrenta neste momento problemas muito concretos de falta de liquidez. Aventou também a hipótese de tirar maior proveito para Lisboa da imagem de Pessoa no mundo. Que ideias gostaria de concretizar nesse âmbito? Gostaria de criar uma revista bilingue que promovesse simultaneamente a cidade e o poeta, o turismo cultural e a literatura. Tenho também a intenção de realizar em Novembro, na Casa Pessoa, um congresso internacional sobre Fernando Pessoa, atraindo investigadores de outros países. E de realizar, em Abril de 2009, a segunda edição do «Letras em Lisboa», com uma maior participação de escritores e artistas – cantores, cineastas, etc. – dos países de expressão portuguesa. E queremos também criar visitas guiadas à Lisboa de Pessoa, a partir da Casa. Penso que seria importante que a Casa estivesse aberta ao fim de semana, quando as pessoas têm mais disponibilidade para a visitar. Mas temos muitos outros projectos dos quais é ainda prematuro falar. Todos os dias as pessoas da equipa da Casa aparecem com ideias novas, e muito boas. No sentido de divulgar a obra pessoana, aceitou uma proposta do jornal brasileiro Folha de São Paulo para organizar uma colecção de antologias dos heterónimos de Fernando Pessoa que será distribuída com o jornal ao longo deste ano em que se assinalam os 120 anos do nascimento do poeta. Como é que esse trabalho está a decorrer, e qual tem sido a aceitação no Brasil? Aceitei essa proposta antes de ser convidada para a direcção da Casa e a verdade é que, com o muito trabalho destes últimos meses, ainda não consegui acabar a primeira dessas seis antologias, que sairão ao longo do próximo ano. Mas o Brasil tem verdadeira paixão por Fernando Pessoa – cantores como Maria Bethânia e Caetano Veloso têm feito muito por isso, também, como aliás por outros poetas portugueses. Da Casa Fernando Pessoa tem-se por vezes a ideia de que há pouco dinheiro, mas muito ‘amor à camisola’ de quem integra a equipa. É assim? É, de facto, assim, de uma forma extrema e comovente. O pessoal da Casa trabalha dias e noites a fio – porque a Casa é simultaneamente um museu e um centro cultural, com debates, conferências e espectáculos, naturalmente ao fim da tarde e à noite – sem receber horas extraordinárias, uma injustiça que se prolonga há anos e que me parece urgente reparar. E trata-se de uma equipa muitíssimo criativa, polivalente e empenhada. A produtividade da Casa é altíssima e o ambiente óptimo. Porque além dos eventos que aparecem nos jornais, a Casa realiza um trabalho de fundo, contínuo, com a população: além das visitas guiadas a escolas, oferecemos ateliers de expressão escrita, plástica e musical para crianças (a partir dos três anos), e, agora, também para os seniores, os mais velhos, que estão muitas vezes isolados e sem estímulo para viver. Gostaria de sublinhar que tenho encontrado idêntico empenhamento e amor à camisola no Director Municipal de Cultura, o professor Dr. Rui Pereira. O que é que mais gosta de Pessoa? Uma fase, um heterónimo? O que é que mais a toca? Apaixonei-me por Pessoa na adolescência através da poesia de Álvaro de Campos, e é esse, ainda, o heterónimo que mais me toca. E nunca me canso de reler «O Livro do Desassossego» de Bernardo Soares. Mas neste momento estou fascinada com Maria José, uma jovem corcunda através da qual Pessoa transmite todas as alegrias e dores da paixão. «Meter-se alguém connosco é a gente ser mulher», escreve Pessoa, com lágrimas autenticamente femininas. Pessoa é uma surpresa constante, a surpresa e o soco da verdade no nosso coração. Como é que gostaria que o país homenageasse Pessoa? Já que temos o Dia de Luís de Camões, não devíamos ter o Dia de Fernando Pessoa? Um dos problemas de Portugal é o de ser um país-a-dias. Saltitamos de homenagem em homenagem, de festa em festa, de espavento em espavento, e o trabalho de fundo continua por fazer. Devíamos ter um plano para Fernando Pessoa, isso sim. Para potenciar a cultura portuguesa através desse inesgotável cartão de visita. Tenho algumas ideias sobre isso – mas não adianta lançá-las ao vento sem suporte. Como conhecedora da obra e do espírito – tanto quanto possível – do poeta, julga que se Pessoa tivesse nascido há 20 anos, e não há 120, teria condições para crescer Pessoa? Ou a sociedade actual encarregar-se-ia de aniquilar o seu espírito irrequieto e insatisfeito? Nada poderia aniquilar Fernando Pessoa – como não o aniquilaram as dificuldades económicas constantes e o desdém do meio cultural do seu tempo que, salvo honrosas excepções, não o soube reconhecer. Não esqueçamos que Pessoa foi chumbado quando se candidatou a um lugar de bibliotecário, e que «Mensagem», o único livro que publicou em vida, mereceu apenas uma menção honrosa, num prémio literário ganho por uma porcaria qualquer de que hoje ninguém lembra o título nem o autor. Consegue imaginar um Fernando Pessoa no Second Life, ou a escrever num blogue? Perfeitamente. Nenhuma existência virtual tinha segredos para ele.
Andreia Gouveia

terça-feira, 3 de junho de 2008

Pessoa/120 anos: Busca do "sentido da vida" e "ideia nacional" atrai leitores russos do poeta português


**José Milhazes, da Agência Lusa **
Moscovo, 02 Jun (Lusa) - Uma rápida visita à internet russa mostra que o poeta português Fernando Pessoa (1888-1935) está longe de ser desconhecido entre os leitores russos.
Pelo contrário, traduzido por grandes poetas russos como Boris Pasternak, o autor do romance "Doutor Jivago", e Boris Slutski, Pessoa atrai os que andam à procura do "sentido da vida". Outros buscam na sua poesia a "ideia nacional".
"Os leitores russos não procuram a mesma coisa na poesia de Pessoa. Uns estudam na sua obra o fenómeno da heteronimia, que teve nele o expoente máximo e está ligado à tradição de Dostoievski" refere a professora Olga Ovtcharenko, em declarações à Lusa.
"Mas há outros - continua - que concentram as suas atenções na 'Mensagem', porque nela Pessoa estuda e revela a psicologia e ideia nacionais. Actualmente, na Rússia, assistimos a uma crise de identidade, de nacionalidade, daí o interesse pelo poeta português".
Segundo Olga Ovtcharenko, o escritor nacionalista russo Alexandre Prokhanov escreve muito sobre o Quinto Império, "mas as suas ideias sobre esse tema estão na obra de Fernando Pessoa".
Esta estudiosa da Literatura portuguesa reconhece que, primeiro, descobriu Camões e, depois, ao estudar a continuação da tradição camoniana na literatura lusa, chegou ao séc. XX e a Fernando Pessoa.
O seu interesse por Fernando Pessoa já se materializou na publicação de obras como "Fernando Pessoa e a tradição do ocultismo em Portugal", "Prosa oculta", "Concepção de Deus na obra de Fernando Pessoa" e "Problema do destino histórico de Portugal no ciclo poético de Fernando Pessoa".
Andrei Rodossky, professor de Língua e Literatura portuguesas a Universidade de São Petersburgo, foi um dos que tentaram traduzir Fernando Pessoa para russo, mas desistiu.
"No início da minha actividade de tradutor, debrucei-me sobre 'Mar Português', mas essa tradução não foi publicada por ter um nível baixo e porque foram editadas traduções da obra de Pessoa de muito boa qualidade. Virei-me para Mário de Sá-Carneiro", disse.
Este professor é conhecido entre a comunidade lusófona na Rússia não só pela excelente tradução de obras de Mário de Sá-Carneiro, mas também de outros poetas portugueses modernos.
Rodossky atribui a existência de numerosas traduções da poesia de Fernando Pessoa para russo ao facto de "ele ser um lírico apurado, profundo, e de existirem traduções que dão uma imagem perfeita da sua riqueza poética".
"Obras como a 'Mensagem' são mais populares entre os russos que se interessam pela História de Portugal, enquanto que a maioria dos admiradores de Pessoa se interessa pela sua lírica, de um psicologismo profundo, que reflecte profundamente sentimentos e emoções", sublinha.
"Além disso - continua - a obra de Fernando Pessoa coincide temporariamente com o Século de Prata da poesia russa (primeiro terço do séc. XX). Este período era censurado pelo regime comunista e, quando cai, os russos estudam-no com intensidade, interessam-se pelo que se escrevia na Europa nessa altura e vão dar a Fernando Pessoa, um dos expoentes poéticos da época".
A obra poética de Fernando Pessoa foi numerosas vezes publicada na União Soviética e na Rússia.
Além das traduções de poemas dispersos por conhecidos poetas russos como Boris Pasternak e Boris Slutski (este ocupou-se da poesia do heterónimo Álvaro de Campos), é de salientar a publicação da colectânea "Lírica", com prefácio de Jacinto Prado Coelho, em 1978, "35 sonetos ingleses de Pessoa", traduzido por Valerii Pereleshin, bem como outras colectâneas em 1988 e 1989.
Pereleshin, pseudónimo de Valerii Salatko-Petryshche, foi um poeta que saiu da Rússia em 1917, depois da vitória da revolução comunista. Viveu na China até 1952 e depois no Brasil. É nesse país lusófono que este poeta traduz para russo parte da obra de Fernando Pessoa e alguns sonetos de Luís de Camões.
Mas a maior edição das obras poéticas de Fernando Pessoa (Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Coelho Pacheco, Álvaro Campos) foi realizada em 1989 e nela participaram conhecidos tradutores russos de poesia portuguesa como E.Vitkovski, A.Guleskul, A.Kosse, B.Dubin, V.Reznitchenko e S. Aleksandrovski.
Em 1977, Olga Ovtcharenko publica a sua tradução da obra "Mensagem" e Boris Dubin edita em russo "Páginas Dispersas".
No ano seguinte, alguns poemas de Fernando Pessoa são publicados na colectânea "Estrofes do século -2", que reúne poemas dos maiores poetas do século XX.
Em 2006, o poeta português chega de novo aos leitores russos noutra colectânea: "Século da Tradução".
O interesse pela obra de Fernando Pessoa na Rússia aumenta consideravelmente nos últimos anos devido à publicação em língua russa dos romances "Os últimos três dias de Fernando Pessoa", de António Tabucchi, e "Ano da Morte de Ricardo Reis", de José Saramago.
"Foi o primeiro autor que li em português e gostei muito, porque não imaginava que numa língua cheia de "ches" se podia escrever poesia tão lírica e bela", declarou à Lusa Nikita Muraviov, estudante do primeiro ano de língua portuguesa do Instituto de Relações Internacionais de Moscovo.
"É o verdadeiro Pushkin português", qualificou. Alexandre Pushkin é considerado o maior de todos os poetas russos.
A poesia de Fernando Pessoa serve também para vender flores. Várias floristas russas citam o poeta português para promover a sua produção: "E o jardim tinha flores/De que não me sei lembrar... Flores de tantas cores... Penso e fico a chorar...".
Os versos de Pessoa "Se te queres matar, porque não te queres matar?" servem de mote a um estudo do Instituto de Psicoterapia e Psicologia Clínica da Rússia com vista a prevenir o suicídio: "Que dizer a um homem que está no telhado. Texto para impedir suicídios".
Lusa/fim

Eu "not" Pessoa



Integrado nas comemorações do 120.º aniversário do nascimento de Fernando Pessoa, a Companhia de Dança de Almada, apresenta uma criação que tem como ponto de partida o verso do poeta "I know not what tomorrow will bring" (Eu não sei o que o amanhã trará). Estreia a 13 de Junho no Teatro Municipal de Almada.
Uma coreografia onde se exploram quatro personalidades dentro do mesmo ser. Quais os seu hábitos? Quais as suas características físicas? Como uma personalidade influência o estar, o sentir e o actuar?
PUBLICO.PT

120 Anos do Nascimento do Poeta Fernando Pessoa



Um ciclo de conferências, curtas-metragens, uma exposição, um concerto e uma peça de teatro são algumas das iniciativas promovidas pela Casa Fernando Pessoa para comemorar os 120 anos do nascimento do poeta, que se assinala a 13 de Junho de 1888.
A partir de 1 de Junho, e até ao final do mês, será exibido na RTP, em horário nobre, um conjunto de pequenos filmes, com cerca de um minuto e meio, em que figuras públicas de diversas áreas e também algumas crianças lêem um poema de Fernando Pessoa da sua escolha.
O projecto, intitulado "Pessoa, Pessoas", é uma produção da Casa Fernando Pessoa (CFP), com o apoio do grupo editorial LeYa, realizada por uma equipa coordenada por Elvis Veiguinha, em que participam os escritores José Eduardo Agualusa, Lídia Jorge, Francisco José Viegas e Inês Pedrosa (directora da CFP), os músicos Pacman, Camané, Rui Reininho, Carlos do Carmo e Sérgio Godinho, o actor Miguel Guilherme, as jornalistas Paula Moura Pinheiro e Patrícia Reis, o comentador televisivo Marcelo Rebelo de Sousa e os políticos Jerónimo de Sousa e Teresa Caeiro, entre outros.
A 3 de Junho, decorre na CFP o lançamento de uma edição em inglês de "Mensagem", pela Oficina do Livro, com tradução de Richard Zenith e ilustrações de Pedro Sousa Pereira, seguido de um debate sobre a obra de Pessoa, que contará ainda com a participação da editora-executiva da Oficina do Livro Cristina Ovídio e do professor universitário Fernando Cabral Martins. A sessão, marcada para as 18h30, terminará com uma leitura de excertos da "Mensagem" em português, pelo actor João Grosso, e em inglês, por Richard Zenith.
No dia seguinte, 4 de Junho, inicia-se um ciclo de conferências seguidas de debate intitulado "Fernando Pessoa, o Guardador de Papéis", organizado pelo investigador colombiano Jerónimo Pizarro, que decorre até 02 de Julho, sempre às quartas-feiras, pelas 18h30, na Casa Fernando Pessoa.
Os temas "Vida-Obra", "Obra-Vida", "Tradução", "Biblioteca" e "Edição" serão abordados nas cinco conferências por especialistas como a escritora Manuela Nogueira, sobrinha do poeta, Steffen Dix, tradutor de textos do autor ligados à religião e à filosofia, o poeta e ensaísta Manuel Gusmão, os investigadores Patrício Ferrari e Carla Gago, as professoras universitárias Rita Patrício e Ana Freitas e o investigador José Barreto.Uma exposição de ilustração da autoria de Richard Câmara, intitulada "Pessoa Popular", será inaugurada a 5 de Junho na Casa Fernando Pessoa.
No dia em que se completa o 120.º aniversário do nascimento de Fernando Pessoa, 13 de Junho, o Terreiro do Paço acolhe o espectáculo "Hip Hop Pessoa", uma iniciativa da CFP, da Câmara Municipal de Lisboa e da editora discográfica Loop: Recordings que reúne escritos do poeta e alguns dos mais conhecidos nomes do movimento Hip Hop nacional, como Melo D, Maze e Fuse, dos Dealema, Raptor, Rocky Marsiano, Rodrigo Amado, Sagas, Dj Ride, T-One, D-Fine e Viriato Ventura, pai de Sam The Kid.
A animação no Terreiro Paço começa às 18h00, com os Djs da Loop Rui Miguel Abreu, José Belo, D-Mars, e DJ Ride e com Nomen, um dos mais reputados artistas de graffiti portugueses, a pintar painéis alusivos à iconografia pessoana, e o concerto começará às 22h00.
Em Setembro, será editado um CD de homenagem a Fernando Pessoa com a participação destes e de outros artistas - que estará parcialmente disponível para download gratuito no portal LX Jovem, da Câmara de Lisboa, financiadora do álbum - acompanhado de um DVD com entrevistas a todos os envolvidos no projecto e da gravação do concerto de 13 de Junho.
Uma peça de teatro baseada no único texto escrito por Pessoa no feminino, "A Carta da Corcunda para o Serralheiro", será apresentada na Casa Fernando Pessoa em três noites consecutivas - 18, 19 e 20 de Junho, pelas 21h30, com entrada livre - com interpretação da actriz Ângela Pinto e encenação de Hélder Gamboa.
Esse texto, assinado por Maria José, e uma resposta a ele da autoria de Inês Pedrosa, intitulada "A Carta do Serralheiro para a Corcunda", estão publicados num número especial da revista Egoísta dedicado ao poeta, que reúne contributos de escritores como Antonio Tabucchi, Nuno Júdice, Fernando Pinto do Amaral e Hélia Correia, dos investigadores Richard Zenith, Teresa Rita Lopes, Jerónimo Pizarro e Patrício Ferrari e do fotógrafo Daniel Blaufuks, entre outros.