Sob o rótulo “Film Arguments”, Fernando Pessoa deixou escritos e datilografados argumentos cinematográficos em três línguas que só agora serão publicados em Portugal, bem como planos para criar uma produtora de cinema, a Ecce Film, e o respetivo logótipo.
Com edição, introdução e tradução de Patricio Ferrari e Claudia J. Fischer, todos esses textos de Pessoa diretamente relacionados com cinema, inéditos em Portugal, foram pela primeira vez reunidos num volume intitulado “Argumentos para Filmes”, que chega a 08 de julho às livrarias, no âmbito da coleção “Obras de Fernando Pessoa”, coordenada por Jerónimo Pizarro e publicada pela Ática, chancela da Babel.
Aí se podem encontrar seis argumentos cinematográficos incompletos da autoria de Fernando Pessoa, “quase certamente escritos ainda na época do cinema mudo”, indicam os autores da obra no prefácio.
Quatro dos argumentos, “todos datáveis da década de 1920”, foram escritos em inglês – um deles com diálogos em português –, com indicações como “Nota para um ‘thriller’ disparatado. Ou para um filme” ou “Meio plano para peça ou filme.”
Os outros dois, “de data posterior a 1917” e redigidos em francês, já foram publicados, sim, mas apenas em França, em 2007, num pequeno opúsculo da Pléiade, juntamente com a tradução francesa de dois dos argumentos ingleses, e terão agora a respetiva tradução em português.
À Lusa, Claudia J. Fischer, professora e investigadora do Centro de Estudos Comparatistas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, disse que embora tais argumentos cinematográficos não tenham até agora sido transcritos e traduzidos para português, presume que “já houvesse há algum tempo conhecimento da sua existência no espólio” de Fernando Pessoa (1888-1935).
“É espantoso” que tais textos não tenham ainda sido divulgados em Portugal, tendo em conta o grande número de estudiosos da obra do poeta que já teve acesso à sua famosa arca de papéis, observou a coautora deste livro, acrescentando que “além destes, há ainda outros textos que nunca foram publicados, contrariamente à ideia que existe de que tudo do Fernando Pessoa já está publicado”.
“Provavelmente, nunca foram levados muito a sério, porque são fragmentados, não são muito completos. Nunca chegou, ele próprio, a avançar com uma proposta de publicação, porque não teriam ainda a sua forma definitiva. Penso que será por isso”, sustentou.
O que Claudia J. Fischer e Patricio Ferrari acharam “particularmente fascinante” nestes argumentos ou planos para argumentos de filmes foi o facto de eles refutarem a tese de que Fernando Pessoa não se interessava por cinema, uma tese que até agora vigorava e era defendida em várias obras, incluindo o “Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português”, um volume publicado em 2008, com quase 600 artigos da autoria de 90 especialistas portugueses e estrangeiros, centrado na obra do poeta e nos traços culturais do seu tempo.
Essa tese tinha como fundamento excertos de alguns poemas de Álvaro de Campos, textos e correspondência de Pessoa em que este expressava uma quase aversão à sétima arte e que estão também incluídos neste livro “Argumentos para Filmes”, para melhor se entender o que afinal pensava o poeta sobre o cinema.
Nesses textos, “há várias referências ao cinema, muitas em tom um pouco depreciativo, mas porque está a referir-se ao cinema hollywoodiano, que considerava superficial – ou seja, há realmente um tratamento do tema do cinema, mas de um ponto de vista crítico”, apontou a investigadora.
Porém, como Pessoa “tinha a preocupação de ‘Fazer pela Vida’ – para citar o título do livro que Mega Ferreira escreveu sobre ele, em que ele apresenta vários projetos, patentes de máquinas, etc. –, como tinha a preocupação de rentabilizar algum produto seu, nós pensamos que estes argumentos, especialmente os ingleses, provavelmente tinham o intuito de ser comercializados no mercado anglófono – e não no português – e por isso é que estão em inglês”, referiu.
“São ‘thrillers’, às vezes lembram um bocadinho comédias de costumes, são sempre brincadeiras em torno de trocas de identidade, o que é muito interessante também para uma poética do Pessoa, toda a questão da identidade está muito iminente. São textos fragmentários, curtinhos, mas podem completar imensamente uma imagem do perfil que tem sido construído de Fernando Pessoa”, defendeu.
Outro dos capítulos do livro é dedicado aos projetos do poeta relacionados com o cinema: em 1919/1920, queria criar uma empresa que se chamaria Cosmopolis e, mais tarde, o Grémio de Cultura Portuguesa, “que eram uma espécie de agências de propaganda nacional” – explicou a professora universitária –, cuja ação passaria necessariamente pelo cinema, que Pessoa descreveu, nos seus planos, como “uma das maiores armas de propaganda que se pode imaginar” e que pretendia usar “para divulgar Portugal no mundo”.
E no âmbito destes dois projetos – “que passou muito despercebida” – de criar uma produtora cinematográfica, a Ecce Film, sublinhou.
“O logótipo, completamente inédito, que nós reproduzimos no livro é invenção do Fernando Pessoa, incluindo o aspeto gráfico. Ele ensaiou vários logótipos para esta Ecce Film e imaginou já o papel timbrado e os envelopes com uma morada – que nós desconhecíamos se existia e que fomos procurar”, descreveu.
A morada era ‘Rua de S. Bento, números 333 e 335’ e os dois investigadores descobriram que aí existira um estúdio de cinema que era utilizado por importantes produtoras de filmes da época.
O que se conclui, frisou Claudia J. Fischer, e é essa a grande novidade deste livro, é que “Fernando Pessoa estava a par do que se passava no setor cinematográfico em Lisboa, interessava-se por isso e chegou mesmo a projetar qualquer atividade sua ligada ao cinema, fosse produção ou fosse divulgação”.