quarta-feira, 8 de outubro de 2008

BLOG ACTION DAY - 15 DE OUTUBRO

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Literatura: "Weltliteratur" - uma exposição para ser lida na Gulbenkian

Lisboa, 29 Set (Lusa) - A exposição "Weltliteratur", que será inaugurada terça-feira na Fundação Gulbenkian, é para ser lida. Mostra textos, fotografias, documentos, quadros e vídeos e estabelece nexos entre eles.

Fernando Pessoa é a figura central desta exposição e logo à entrada está um recado para o escritor.

"Snr Pessoa Precisei de sair, está o jantar prompto é só sentar à mesa, tirar do lume e comer. Adelaide". Esta é a frase que se pode ler nas paredes brancas da entrada da primeira das 11 "salas" construídas para a exposição.

Logo a seguir, surgem fragmentos da obra de Pessoa, um deles descrevendo o Rossio em Lisboa, e numa fotografia ao lado pode ver-se o autor nas ruas da cidade.

O percurso que acolhe a exposição, comissariada pelo professor universitário António M. Feijó, foi concebido pelos arquitectos Manuel e Francisco Aires Mateus.

"Para nós é muito claro que esta exposição é sobre o prazer da leitura", afirmou Manuel Aires Mateus, sublinhando que Weltliteratur "é uma exposição para ler".

"Weltliteratur - Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o Mundo!" é a designação dada à mostra, associando uma expressão de Goethe a um verso de Cesário Verde.

"A exposição pretende mostrar que um texto só é legível dentro de um nexo de outros textos", afirmou António M. Feijó na apresentação da mostra.

Para o professor universitário, a exposição "é sobre Fernando Pessoa e alguns contemporâneos, alguns previsíveis, como é o caso de Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros, mas outros que o não são".

Teixeira de Pascoaes, "talvez o único par de Pessoa no século XX português", Camilo Pessanha, "que é de uma geração anterior", e Vitorino Nemésio, "que aparece como expoente de toda a grande poesia pós-Pessoa", são outros escritores com espaço em "Weltliteratur".

Há textos que mostram caracterizações de Portugal nos poemas épicos de Camões e Pessoa e outros que tratam a diferença sexual e apontam conflitos gramaticais.

A arte moderna é o tópico de uma das salas, que apresenta o quadro de Manet "O Rapaz das Cerejas", da colecção da Gulbenkian, associado à escrita de Baudelaire, que conta o que de terrível aconteceu ao rapaz retratado.

O mar é apresentado num excerto do filme de Manoel de Oliveira "Cristóvão Colombo - O Enigma" e num outro filme sobre a frota portuguesa de pesca no Árctico.

Uma das salas mostra correspondência e poemas de Mário de Sá-Carneiro, uma outra expõe poemas e cartas de Camilo Pessanha e um outro momento da exposição mistura a obra plástica e literária de José de Almada Negreiros.

A terminar a exposição surgem textos de Fernando Pessoa e Teixeira de Pascoaes.

"Weltliteratur" estará na galeria de exposições temporárias da Gulbenkian de 30 de Setembro a 4 de Janeiro e, coincidindo com a mostra, a Gulbenkian organiza um ciclo de 18 conferências em que várias personalidades de diferentes áreas são convidadas a falar de literatura.

O escritor V. S. Naipaul, galardoado com o Prémio Nobel da Literatura, é um dos convidados e dará uma conferência no dia 22 de Novembro.

EO.

Lusa/fim

keywords: cultura

O roubo na quinta das vinhas



A ação passa-se numa noite de setembro de 1905, na Quinta das Vinhas, com a presença do proprietário, José Mendes Borba, e do seu filho, José Alves Borba, bem como da sua irmã Adelaide, sua sobrinha (filha desta), Maria Adelaide, de um primo, aspirante a oficial, Manuel Barata, e de uma amiga de Maria Adelaide, Maria Elisa. Também está com e/es o Eng. Augusto Claro, a convite de José Mendes Borba, o dono da Quinta. É o narrador do caso.

Uma noite, pelas 24 horas, depois de uma explosão, foi encontrado arrombado o cofre da casa, de onde tinham desaparecido cem títulos da Dívida Externa Portuguesa, que aliás, dois dias depois, tinham entrado em circulação.Depois das investigações a cargo do agente Lima, este desconfiou do filho do dono da casa, com dificuldades de dinheiro e que aliás tinha já maus precedentes, além de que era amigo de Manuel, passador de moeda falsa. Por outro lado, o roubo devia ser da responsabilidade de alguém da casa. Sabia-se que, a hora do crime, todas as pessoas citadas estavam na casa, já recolhidas aos seus quartos, com a exceção do proprietário e do Eng. Augusto Claro.

O agente Lima estranhava que o Engenheiro tivesse justamente subido ao 1º andar (onde se localizava o cofre) pouco antes da explosão. Convencido de que tudo fora obra de uma quadrilha com inteligências, não só com o filho do dono da casa, mas também com mais alguém, o agente prendeu o jardineiro José Algarvio.

É então que o Engenheiro pede ao Dr. Quaresma que procure resolver o enigma, tanto mais que está convicto da inocência do jardineiro. É por aqui que principia, no texto de Pessoa, a narrativa do Eng. Augusto Claro, em discurso direto.

Observe-se que, em apontamento datilografado, o poeta nos deixou uma síntese do livro, dividida em cinco partes:

l. Indicações sobre as pessoas, os locais, e o caso como se deu até ao princípio da investigação policial .
II. Narrativa das investigações policiais, incluindo o encontro de quatro títulos, o esbarrar das investigações (conduzidas sempre na hipótese de o culpado ser um estranho), até a saída do narrador da Quinta das Vinhas.
III. Narrativa de como o caso realmente se passou, até o narrador ficar aguardando com receio a vinda do princípio do ano.
IV. A segunda investigação policial, a visita ao Dr. Quaresma, até ao braço no ombro do narrador.
V. A explicação do Dr. Quaresma.

Eis os fragmentos da narrativa do Engenheiro, que o autor chegou a escrever:

1º fragmento:

Apesar de me maçar, por antecipação, a idéia de ir contar ao Dr. Quaresma toda a história do roubo, não podia decentemente furtar-me a fazê-lo. Por isso, resignando-me com placidez, lhe expus, resumindo o mais possível, todos os fatos que vão expostos no decurso desta narrativa. Fiz, como e de supor, algumas supressões: não falei nas dividas do José Alves, nem no caso dos quinhentos escudos, e muito menos da parte do discurso do Lima de que estas coisas tinham sido o assunto e a base. Não pude, porem, esquivar-me a falar da hipótese policial, de que havia uma quadrilha a trabalhar, e que a polícia suspeitava que o fizessem em ligação com alguém de dentro da Quinta das Vinhas. Se não explicasse isto, era incompreensível a prisão de José Algarvio; e, aliás, bastava que o Dr. Quaresma se interessasse ativamente por ele para o descobrir na policia.

O Dr. Quaresma ouviu-me com grande atenção; mas, se assim posso dizer, com uma atenção dividida. Parecia, ao mesmo tempo que me ouvia com os olhos, estar escutando uma voz que não era a minha. Reconheço o absurdo deste modo de dizer, mas transcrevo a minha impressão sensorial. Na realidade, o Dr. Quaresma parecia, sem deixar de me ouvir atentamente, estar todavia a seguir o decurso interior de uma outra coisa - raciocínio ou conjectura ligada - que não deixava de ter relação com o que eu ia narrando.

Acabei, por fim, a minha narrativa, e supunha-me livre do fardo dela. Mas o Dr. Quaresma, que não me interrompera enquanto eu contava, começou nesta altura a inter- rogar-me. Pediu-me uma descrição minuciosa das pessoas que estavam na casa por ocasião do roubo; a minha descrição direta havia sido sumária. Interrogou-me sobre idades, profissões, estados financeiros, e tudo mais. Comecei a sentir-me menos à vontade, sobretudo quando o José Alves era o assunto do interrogatório. Eu não podia dizer toda a verdade sobre o José Alves, mas também, em simples justiça ao preso, não podia suprimir redondamente os fatos. Além disso, não estava muito seguro que o Dr. Quaresma, falando depois à polícia, não iria descobrir os fundamentos da outra hipótese do agente Lima. Decidi narrar o caso de certas atrapalhações financeiras do José Alves, não explicando o jogo que ele motivara, nem fazendo referência ao furto anterior.

A certa altura, porém, comecei a atrapalhar-me, pois o medico entrou no assunto por desvios. Perguntou-me se as relações entre pai e filho tinham sido sempre boas, ao que eu respondi que me parecia que sim, mas o próprio verbo "parecer" me soou cauteloso demais, e receei que levasse ao Dr. Quaresma mais informação do que eu queria dar. Com essas e outras perguntas me entreteve, sem me divertir, durante cerca de uma hora e meia, a contar do início da minha conversa.

Há aqui uma lacuna, a do pedido do Engenheiro ao Dr. Quaresma, para que salve o jardineiro, a seu ver injustamente preso. A narrativa prossegue:

2º fragmento:

- Só o posso fazer pondo a mão no verdadeiro criminoso.

- Então faça-o, Sr. Dr. Quaresma.

Quaresma desdobrou as mãos, estendeu a destra e tocou-me no ombro. Por fim, levantou-se da cadeira, e dirigiu-se para um cabide onde tinha o chapéu.

- Não se importa que saíssemos? - perguntou. - Queria passear um pouco para acabar uns certos raciocínios.

- Não me importo nada. - E saímos.
Descemos a Rua dos Fanqueiros. Estava uma tarde linda de Outono. Seguimos lado a lado, silenciosos ambos, e, no fim da rua, seguindo o movimento do Dr. Quaresma, viramos à direita, para o Terreiro do Paço. O Dr. Quaresma avançou lentamente, cabisbaixo, as mãos sempre cruzadas atrás das costas, até à muralha da esquerda. Ali parou, e eu com ele, e contemplou vagamente o rio. Esteve assim um momento. Depois voltou-se para mim com uma expressão grave e direta nos olhos naturalmente um pouco febris.

- Eu salvo o José Algarvio - disse. - Mas, antes de o fazer, preciso estudar com muito cuidado como hei de proceder no assunto. Calhou muito bem que fosse o Sr. Claro que me procurasse, porque é consigo que eu tenho estudar a sério a resolução do assunto. Diga-me uma coisa: ocorreu-lhe alguma vez que o José Alves pudesse ser suspeito?

- Se me ocorreu? Não. Como sabe o Sr. Dr. Quaresma que ele é, ou pode ser suspeito?

Depreende-se que assim é. O diálogo continua:

- Se eu salvar este José Algarvio, o José Alves será fatalmente preso.

- Talvez não - disse eu.

- É-o com certeza. Será preso e será condenado. Este José Algarvio salva-se com facilidade, nem era preciso o meu auxilio para nada. O José Alves é que se não salva. É pena. Quer dizer, não se salva, se o caso seguir o seu curso entregue só à policia. Há só um processo de o salvar: é pôr a mão no criminoso. Ora a polícia não é capaz de o fazer, porque caiu, desde o princípio, num erro fundamental, naquele mesmo erro em que o criminoso quis que ele caísse.

- E o Sr. Dr. Quaresma sabe quem é criminoso?

- Sei. Quer que eu salve o José Alves?
- Quero - disse eu hesitantemente, sem perceber o que se seguiria.

No fragmento seguinte, também encontrado no espólio, quem fala agora é o Dr. Abílio Quaresma, médico e decifrador, expondo os raciocínios que o levaram à conclusão lógica do problema.

4º fragmento:

O critério de investigação que adoto, porque o acho o mais racional de todos, é o dividir a investigação preliminar em três tempos. O primeiro tempo é determinar quais são os fatos incontestáveis, absolutamente incontestáveis, eliminando todos os elementos que não o sejam, ou porque não ha certeza direta deles, ou porque sejam conclusões - talvez lógicas, talvez inevitáveis - tiradas desses fatos, mas, em todo o caso conclusões e não fatos. Citarei um exemplo para esclarecer inteiramente o que desejo significar com estas observações. Suponha que está um dia de chuva e que estou em casa. Aparece-me um indivíduo com o fato a escorrer em água. É natural que eu pense: "Este homem andou à chuva e assim ficou molhado." Mas pode bem ser que não andasse à chuva, que entornassem água sobre ele aqui dentro de casa. A maioria da gente consideraria um fato o ter andado esse homem à chuva. Afinal é uma conclusão - uma conclusão naturalíssima, mas uma conclusão, ou uma dedução. Se eu tivesse estado à janela, tivesse visto esse indivíduo vir pela rua fora sob uma chuva pesada, poderia ainda, é certo, esse molhar da chuva ser suplementado por outra circunstância qualquer, mas alguma coisa da chuva teria molhado o homem, e eu poderia, em todo o caso, afirmar que o homem tinha andado à chuva. E então isso seria um fato.

Ora, neste caso do roubo na Quinta das Vinhas, há alguns fatos que parecem incontestáveis (digo "parecem", pois eles se baseiam em testemunhos que podem ser falsos, involuntária ou propositadamente). Esses fatos são: que cerca da meia-noite do dia ... de Setembro se deu uma explosão de dinamite na fechadura do cofre no escritório da Quinta das Vinhas; que esse escritório e a saleta anexa estavam fechados por dentro, aberta a janela da saleta, e dois cães mortos por envenenamento; que se verificou nessa altura não estarem no cofre dinamitado uns títulos (cem) da Divida Externa Portuguesa, 1ª série, que haviam estado nesse cofre; que se não encontrou sinal de ninguém suspeito na busca que se passou imediatamente nas proximidades da casa; que todos os títulos roubados, verificados os seus números por uma lista que existia em poder do proprietário dos títulos, foram passados para a circulação bancária da praça sem que qualquer deles fosse apanhado no processo de passagem. Fatos, simplesmente fatos, há só estes. Quanto mais se queira passar por fato é simplesmente dedução.
Estabelecidos os fatos incontestáveis, chegamos ao segundo tempo da investigação. Este tempo consiste no seguinte: em descobrir qual e a hipótese que mais completamente liga e explica os fatos incontestáveis. Mas, descoberta esta hipótese, há que investigar que outras hipóteses haverá que também, embora com menos probabilidade aparente, se ajustem ao conjunto dos mesmos fatos. E essas hipóteses determinam-se por um processo simples: descoberta a hipótese mais provável, estabelece-se Jogo a hipótese contrária e verifica-se qual o grau de probabilidade que a essa hipótese contrária compete. Estabelecido isto, será possível partir para as outras hipóteses, isto é, aquelas que estejam intermédias, entre a mais provável e a sua contrária, e ir verificando, a uma e uma, quais as probabilidades delas.

No caso de que se estamos tratando, a hipótese aparentemente mais provável é a que toda a gente aceitou desde logo, instintivamente, achando-a tão provável que a tomou, até, por fato e não por hipótese ou conclusão. Essa hipótese é de que o roubo houvesse sido praticado por um indivíduo ou indivíduos, estranhos à Quinta das Vinhas, que houvessem envenenado os cães, entrando em casa escondidos, posto a dinamite, roubado os títulos e fugindo depois, suficientemente depressa para não serem vistos. Conhecida esta hipótese, estabeleceremos a hipótese contrária. A hipótese contrária é que o roubo não tenha sido praticado por indivíduos estranhos, que não tenha havido nenhuma das circunstâncias aparentes já indicadas. É isso que constitui, como é de ver, a hipótese contrária.

Ora que probabilidade se pode ligar a esta hipótese contrária? Como a hipótese mais provável, a mais imediata para todos, é que o roubo fosse feito por estranhos, e nas circunstâncias indicadas, a hipótese contrária será realmente provável apenas num caso: se houve a intenção de simular esse roubo por estranhos. Nesse caso, a hipótese contrária é provável; tão provável como a primitiva é natural.

Estamos, pois, perante duas hipóteses prováveis, e que entre si se opõem. Qual das duas é a mais provável? Temos que considerar isto à luz do exame das circunstâncias diretas do roubo, ou seja, considerando (1ª) o local do roubo, (2ª) a hora em que o roubo foi praticado, (3ª) a natureza do objeto roubado. São estes os três elementos materiais diretos do sucesso.

O local do roubo pode ser considerado sob dois aspectos - o local em si mesmo, e a escolha deste local para roubo; ou seja, o ser o roubo praticado no escritório da Quinta das Vinhas, e o ser a Quinta das Vinhas o local escolhido para o roubo. Quanto a dar-se o roubo no escritório da Quinta, nada há de extraordinário pois ali é que está o cofre, e o roubo havia forçosamente de ser ali. Mas quanto a escolher a Quinta das Vinhas para casa a roubar, o caso é diferente. Que presunção havia de que o cofre da Quinta das Vinhas era mais proveitoso de roubar que qualquer outro cofre? Que presunção dessa ordem havia para estranhos? Quem tivesse a habilidade e os processos para roubar como se roubou neste caso, por que escolheria a Quinta das Vinhas, quando, sem desperdício de habilidade, nem maior risco, obteria melhores vantagens atacando outro ponto? A probabilidade neste caso é, pois, em favor de uma pessoa não estranha à casa; capaz de roubar esse cofre por não ter outro a mão - razão suficiente e clara - e sentindo-se na necessidade de simular o roubo dum estranho para desviar a atenção de alguém de dentro da casa, entre os quais ele estaria incluído.

Agora quanto à hora do roubo. Quanto à hora do roubo, é mais estranha se ele foi obra de estranhos do que se foi obra de alguém de dentro de casa. Entrado em casa, o gatuno estranho deixa passar o tempo necessário para ter a certeza, ou a probabilidade grande de estarem todos a dormir. Para que operar logo, ainda que não se soubesse que tinha ficado alguém cá em baixo? Para estranhos é a hora mais espantosa que se pode imaginar. Mas para alguém de dentro da casa, que quisesse simular um roubo por estranhos, a hora e exatamente a que seria escolhida. Estava quase toda a gente deitada, mas ainda estava alguém a pé. Não havia tanta gente a pé que se corresse o risco de cruzar com alguém ao dispor as coisas para a simulação; mas havia ate o número bastante de pessoas para marcar a hora - neste caso a pretensa hora - do roubo e para dar sinal de que o roubo estava cometido.

A natureza do objeto roubado... Se o roubo foi praticado por estranhos, ou iam roubar os títulos ou não iam roubar senão o que encontrassem. Contra a hipótese de que iam ao acaso, milita a própria natureza do roubo, e a maneira como depois foi passada a matéria roubada parece indicar preparação para dispor dela.

Em toda a investigação de um fato, cuja natureza se desconhece e se quer saber ou cujo autor se ignora e se quer descobrir, o que importa, acima e antes de tudo, é isolar nele qualquer elemento que, sendo absolutamente indubitável, seja, ao mesmo tempo, inesperado ou estranho. Este roubo contém dois elementos que são inesperados ou estranhos - as circunstâncias do roubo, e o fato de que se conseguiu passar os títulos sem encontrar obstáculos. Por um destes dois fatos, portanto, convém que principiemos a investigação.

Mas, isolados que sejam os fatos de que se não possa duvidar que se deram, e que são estranhos (presumindo, é claro, que haja mais do que um), escolheremos, para verdadeiro princípio da investigação, aquele desses fatos que seja susceptível de menos interpretações, isto é, aquele que pareça mais misterioso. Ora a passagem dos títulos é susceptível de várias interpretações; pode haver um conluio com qualquer indivíduo num banco ou na bolsa; pode haver um erro qualquer na lista dos títulos; pode ter havido uma troca de títulos sem que se verificasse a troca, nem portanto se conferissem os números. Mas sobre as circunstâncias do próprio roubo não há várias hipóteses plausíveis. Há simples estranheza.

Sim. O roubo foi praticado, ao que se viu, por um processo ruidoso, e a hora não tão cedo que fosse dia, mas não tão tarde que houvesse a certeza de estarem todos deitados em casa, como efetivamente não estavam. Podendo o cofre ser aberto por vários processos que não envolviam ruído, foi escolhido um processo que precisamente o causava; e, ainda, um processo invulgar. Resultado: foi escolhido um processo invulgar porque era desnecessário e produzia alarme - exatamente as razões contrárias àquelas que levariam a escolher um processo invulgar. Que a intenção era roubar os títulos é evidente, primeiro porque o modo misterioso como se passaram os títulos deve, qualquer que fosse, ter sido objeto de preparação; segundo, porque, sendo o roubo praticado com gente dentro de casa, não haveria tempo para roubar mais que os títulos.

Ora estas circunstâncias levam-nos a uma conclusão: que o processo empregado para o roubo foi empregado precisamente para dar alarme. Ora não se dá alarme senão para um fim: para enganar sobre a hora do roubo. E, se considerarmos que o processo de roubo - uma deflagração por rastilho - é coisa que pode ser disposta por uma pessoa para produzir resultado quando essa pessoa não esteja presente, chegamos a outra e ulterior conclusão: que o roubo não foi praticado pela deflagração de dinamite. Se o não foi, é porque foi por chave falsa e se foi por chave falsa, quem roubou era uma pessoa da casa, que, pela deflagração, quis dar a idéia de que quem roubara era pessoa de fora. Mas, se essa pessoa queria dar a idéia de que o que roubava não era ele, haveria de completar o seu cenário com o cuidado de estar onde o vissem na ocasião da deflagração e assim assegurar a si mesmo um álibi suficiente. Na altura da deflagração estavam todos deitados menos duas pessoas - o pai Borba e V. Ex.ª. E, como era ele o proprietário dos títulos, a primeira suspeita é sobre V. Ex.ª que recai.

Para que a suspeita se confirme, ou se confirme mais, é preciso ver, primeiro, se, um pouco antes de se dar a deflagração, V. Ex.' saiu de casa de jantar sob um pretexto qualquer e se demorou bastante para dispor o cenário. Ora V. Ex.' saiu sob um pretexto direto - o ter deixado uma cigarreira no quarto do aspirante -, e demorou-se o bastante para dispor o cenário completo, aliás obra de minutos sobretudo para quem, tendo tudo estudado, procede rapidamente.

Agora é o Eng. Augusto Claro, apontado por Quaresma como autor do roubo, que volta a ser o narrador.

5º fragmento:

O Dr. Quaresma desligou as mãos detrás das costas, olhou sem expressão e rapidamente para mim, e, estendendo a mão direita de repente, tocou-me no ombro. Depois tornou a posição em que estava, as mãos outra vez atrás das costas, atadas, e os olhos perdidos sobre o Tejo.

Como uma bola de sabão, estoirou-me a alma, sem ruído, dentro de mim. Fiquei suspenso de um vácuo interior, sem razão, sem fala, sem gesto. Se o Dr. Quaresma tivesse dito qualquer coisa, eu teria respondido qualquer coisa; teria tido a que adaptar a minha razão e a minha voz. Ao silêncio não pude responder nada. O seu gesto era guilhotinante. No longo espaço de curtos segundos tentei desesperadamente formar uma atitude, uma palavra, um gesto, qualquer coisa... Não pude... e então compreendi violentamente quanto pode em nos, se sabem excita-la, a consciência da culpabilidade. Fosse eu inocente, e alguma coisa diria, alguma coisa sucederia. Com cada fração de segundo do meu silêncio a minha culpabilidade enchia o espaço. Com cada fração da minha consciência desse silêncio aumentava a minha incapacidade de falar, de agir, de me defender. A minha der-rota era completa. No fim do que deviam ser poucos segundos reconheci-o inteiramente.

O Dr. Quaresma desviou o olhar do Tejo, mas não o passou por mim. Voltou-se de costas para o rio, disse-me, com um tom de quem antes nada dissera que pesasse: "E se nós nos fôssemos embora?" E, avançando ele para o Arco da Rua Augusta, avancei, silencioso ao lado dele, soterrado em mim sob a acusação definitiva que não fora proferida.

A meio da Praça o Dr. Quaresma voltou para mim a face, mas não os olhos, e disse: "O que pensa fazer?"

Tive uma grande vontade de chorar, de lhe pedir perdão, a ele, a quem nada fizera. Durante um momento não pude falar. Depois encontrei a minha voz dizendo-lhe: "Não sei." E acrescentei, passado um momento: "O doutor dirá o que quiser."

O Dr. Quaresma olhou então em cheio para mim, e disse-me com grande simplicidade: "Eu não tenho nada a dizer. Como já compreendeu, decifrei - posso dizer-lhe que decifrei com muita facilidade - o seu caso. O resto é consigo."

FERNANDO PESSOA: Nascido em Lisboa, no dia 13 de junho de 1888, perde o pai aos 5 anos de idade. Em 1896, a família é levada pelo segundo marido de sua mãe para a África do Sul. Em 1903, ingressa na Universidade do Cabo. Deixa a família na África e retorna para Portugal, onde se matricula no Curso Superior de Letras, que logo abandona. Em 1908, começa a trabalhar como tradutor de cartas comerciais para empresas estrangeiras, esse modesto emprego lhe garantiria o sustento por toda a vida. Funda em 1915, juntamente com amigos, a revista Orpheu, marco inicial do Modernismo Português. Mergulha em anos de relativa obscuridade, publica dois pequenos volumes de poemas em inglês, reunindo Antinuous e 35 Sonnets (1918), além de ensaios e poemas esporádicos em algumas revistas. Em 1934, tomando dinheiro emprestado, publica o livro Mensagem, com o qual participa do prêmio Antero de Quental. Recebe o prêmio de Categoria B. No dia 30 de novembro de 1935, morre de cirrose hepática, sem nunca ter recebido o merecido reconhecimento. Escreveu, no dia de sua morte, a seguinte frase em inglês: " I know not what tomorrow will bring " ( " Eu não sei o que o amanhã trará").

Orpheu


Orpheu, nome mitológico onde radica o termo orfismo, era no panorama nacional, uma revista trimestral de literatura, destinada a Portugal e ao Brasil e de que veio a lume o primeiro número, em 1915, correspondente a Janeiro, Fevereiro e Março. As 83 páginas da revista, impressa em excelente papel e tipo elegante, abriam por uma «introdução» de Luís de Montalvor, em que se pretendia definir os intuitos da obra a que meteu ombros um grupo de jovens que com frequência se reuniam em alguns cafés da baixa lisboeta.
Segundo Montalvor, Orfeu «é um exílio de temperamentos de arte que a querem como a um segredo ou tormento» e a pretensão dos seus fundadores «é formar, em grupo ou ideia, um número escolhido de revelações em pensamento ou arte, que sobre este princípio aristocrático tenham em Orfeu o seu ideal esotérico e bem nosso de nos sentirmos e conhecermos».
Quando a guerra de 1914-18 começou, reuniram-se os factores de um movimento estético pós-simbolista em Lisboa. Aí se conheceram, entre outros, Fernando Pessoa, cuja adolescência se formara na África do Sul, dentro da cultura inglesa; Mário de Sá Carneiro, que entre 1913-16 passou grande parte do tempo em Paris; Almada Negreiros e Santa Rita Pintor, que traziam de Paris as novidades literárias e sobretudo plásticas do futurismo e correntes afins. A estas personalidades do grupo atribuiu a opinião pública sinais de degenerescência, mas hoje é fácil reconhecer que as suas atitudes correspondiam a um sentimento geral de crise latente. Particularidades de formação e temperamento, relacionáveis com a instabilidade social, alhearam os artistas, tanto da ideologia republicana como das reacções críticas que ela despertara.
Mário de Sá Carneiro pertence à geração do Orpheu, a revista que, idealizada no Brasil por Luís de Montalvor e Ronald de Carvalho, pretendia comunicar a nova mensagem europeia, preocupada apenas com a beleza exprimível pela poesia, inspirada no simbolismo de Verlaine, Mallarmé e Camilo Pessanha, no futurismo de Marinetti, Picasso e Walt Whitman, no super-realismo de André Breton. Preconizava a arte pela arte mas ao mesmo tempo a descida a busca ansiosa do «eu» e a fixação da agitada idade moderna.
Em 1914 os jovens modernistas, encetaram seu o projecto que Luís da Silva Ramos (Luís de Montalvor) acabava de trazer do Brasil: o lançamento de uma revista luso-brasileira Orpheu. Dessa revista saíram efectivamente dois números (os únicos publicados) em 1915; incluíam colaboração de Montalvor, Pessoa, Sá Carneiro, Almada, Cortes Rodrigues, Alfredo Pedro Guisado e Raul Leal; dos brasileiros Ronald de Carvalho (que, regressado do Brasil, serviria de traço de união entre o Modernismo brasileiro e português) e Eduardo Guimarães; de Ângelo de Lima, internado no manicómio; de Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa. A revista vinha realizar uma aspiração comum dos jovens poetas que se reuniam à volta de Fernando Pessoa no Irmãos Unidos. No Orpheu poderiam publicar as suas peças de escândalo: poesias sem metro, celebrando roldanas e polias, ou revelando as profundezas do subconsciente, sem passar pelo crivo da razão. O primeiro número, saído em Abril de 1915, esgotou-se em três semanas, por uma espécie de sucesso negativo: comparavam-no para se horrorizarem com o seu conteúdo e se encolerizarem com os seus colaboradores. Um destes, Armando Cortes Rodrigues, conta que eram apontados a dedo nas ruas, olhados com ironia e julgados loucos, para quem se reclamava, com urgência, o hospício de Rilhafoles.
Um segundo número sairia em Julho do mesmo ano, com conteúdos bem mais futuristas; um terceiro número foi organizado e mesmo impresso parcialmente, mas não se publicou. Era mais uma revista literária que morria à míngua de recursos. Não bastara o talento e o arrojo dos seus colaboradores para prolongar-lhe a vida; eram os financiamentos de Sá Carneiro (ou antes, de seu pai, que lhos mandava para Paris) que a sustentavam. Uma reviravolta nos negócios, a cessação da mesada, e fica no nascedouro o que viria a ser o Orpheu 3.

Fernando Pessoa, o Mago


Fernando Pessoa é místico por natureza. Também por palavras, por astros e por heterônimos que lhe desdobram em mil e expressam vidas exclusivas, exatamente como lâminas de um baralho. Atuam e interferem umas nas outras oferecendo destinos, orientações e outros símbolos. Mais e mais símbolos, cada vez mais.

Geminiano, dedicou-se ao estudo da filosofia clássica e contemporânea, sofrendo influências de Baudelaire e do movimento simbolista assim que começou a escrever. Seus estudos de ocultismo englobam toda a sua obra. Caminho mágico, caminho alquímico. Transmutações da própria personalidade. Como astrólogo, introduziu Plutão às cartas. Daí o caráter revolucionário, influência direta do planeta – desbravador de novos mares, tanto os literários e lingüísticos quanto os esotéricos e pessoais. Ou melhor, "pessoanos".
Modernista, investe palavras na Orpheu, uma publicação pra lá de curiosa para quem tem os olhos atentos de cartomante. Na ilustração de capa da primeira edição, assinada por José Pacheco, vê-se uma mulher entre duas velas, como se fossem pilares – nítida associação com a Sacerdotisa do tarô, a Senhora dos Mistérios que, em “O Último Sortilégio” da obra ortônima “Cancioneiro”, marca presença nos versos de uma iniciada. Eles descrevem práticas de magia ritualística, um assunto que Pessoa dominava muito bem.
Aliás, a amizade com Aleister Crowley não pode deixar de ser mencionada. Entre mapas, nevoeiros e auroras douradas, o encontro em Lisboa foi bem mais que obscuro. Fico aqui pensando que "Psiquetipia" foi escrito logo depois de ter conhecido e analisado não só os dados astrológicos mas também os modos e os arcanos nas mãos do mago, mesmo que assinado pela pena de Álvaro de Campos. Pense nas próprias lâminas e leia o trecho.

“Conversa perfeitamente natural... Mas e os símbolos?
Não tiro os olhos de tuas mãos... Quem são elas?
Meu deus. Os símbolos... Os símbolos...”



Pois é, sempre me questionei: “qual teria sido o contato de Pessoa com o tarô? Como, aliás, perceber os arcanos em uma obra tão vasta, tão interrogativa e enigmática?” Bem, a resposta estava na própria pergunta. O tarô é um enigma se pensarmos em sua trajetória histórica, esotérica, simbólica. O poder das imagens que se tornam palavras. Palavras que traduzem imagens. Próprias. Íntimas. Secretas.

Então, se penso nos símbolos, sigo as pistas. Afinal, “tudo são símbolos”. Reparo, então, na famosa anotação que antecede o livro "Mensagem", escrita especificamente para decifrar o conteúdo da obra, recheada de sinais divinos e patriotas. Na verdade, este documento parece ter sido escrito especificamente para os profissionais e estudantes dos arcanos. Longe, então, das intenções sebastianistas e nacionalistas que o autor propôs ao seu estudo, a nota se torna um exercício de interpretação ou mesmo um manifesto que contribui à codificação das cartas e à compreensão do caráter essencialmente polissêmico de seus símbolos. Um documento valiosíssimo que merece atenção, pois infalivelmente contribui para a jornada individual do estudante.

“O entendimento dos símbolos e dos rituais (simbólicos) exige do intérprete – o tarólogo – que possua cinco qualidades ou condições, sem as quais serão, para ele, mortos, e ele um morto para eles. A primeira é a simpatia, em grau de simplicidade e conformidade com as citações. Tem o intérprete que sentir simpatia pelo símbolo que se propõe interpretar. Nesse quesito se enquadra a escolha adequada do baralho, a plenitude e sinceridade do desejo de optar pelas imagens a que se propõe a analisar. A atitude cauta, a irônica, a deslocada – todas elas privam o intérprete da primeira condição para poder interpretar. Cabe aqui a postura de respeito e fidelidade aos arcanos e à prática oracular. Somente pela verdadeira vontade e por constantes e sérios estudos é que as imagens passam a fluir na alma e no cotidiano do indivíduo disposto.
A segunda é a intuição. A simpatia pode auxiliá-la, se ela já existe, porém não criá-la. A dedicação autêntica e continuada das análises promove insights, aberturas mentais e emocionais a outros níveis de interpretação e de capacidade narrativa, mas não nasce repentinamente; quando plantada, exige cultivo e cada arcano espalhado sobre a superfície de leitura. Por intuição se entende aquela espécie de entendimento em que s sente o que está além do símbolo, sem que se veja. Noções diversas sobre diversas situações, explicações e captações lingüísticas por meio da arte – eis a finalidade desta condição. Há de se tomar cuidado com projeções que se jogam ao olho mental, iludindo os menos e os muito preparados.
A terceira é a inteligência. A inteligência analista decompõe, ordena, constrói noutro nível o símbolo; tem, porém, que fazê-lo depois que se usou da simpatia e da intuição. Essa é a premissa básica para estabelecer associações entre as cartas e a cultura, a realidade palpável, às paisagens, aos fatos históricos e até aos imaginários. A inteligência arcana se traduz em criatividade lúdica, representativa e inovadora de quaisquer elementos que se queira abordar simbolicamente. Um dos fins da inteligência, no exame dos símbolos, é o de relacionar no alto o que está de acordo com a relação que está embaixo – o próprio ofício d´O Mago. Não poderá fazer isto se a simpatia não tiver lembrado essa relação, se a intuição a não estiver estabelecido. Então a inteligência, de discursiva que naturalmente é, se tornará analógica, e o símbolo poderá ser interpretado. Eis então o próprio ofício do leitor, que deve aproximar, com estilo, a vida estática das estampas às horas da vida material, sentimental e espiritual para extrair lições e orientações quando solicitadas.

A quarta é a compreensão, entendendo por esta palavra o conhecimento de outras matérias, que permitam que o símbolo seja iluminado por várias luzes, relacionado com vários outros símbolos, pois que, no fundo, é tudo o mesmo. O poder da analogia e da convergência entre disciplinas, conceitos e sistemas diferentes. Alude ao estudo interdisciplinar ao qual o tarô é sujeito, já que trabalha a interdependência simbólica e a evolução de significados sem alterar, diretamente, o fenômeno analisado. Não direi a erudição, como poderia ter dito, pois a erudição é uma soma; nem direi cultura, pois a cultura é uma síntese, e a compreensão é uma vida. Compreender o tarô demanda tempo e maturidade. Exige dedicação e uma determinada carga cultural do estudante, que passará a assimilar emoções, desejos e impressões às cartas após a análise descompromissada das mesmas. A compreensão se dá pela ingenuidade visual, ao olhá-las livres de qualquer significado imposto pela experiência alheia. Aliás, seriam elas uma síntese do mundo? Seriam potenciais, tendências da realidade através dos tempos? Ou então a memória do divino universo da alma? São questões precisas que promovem respostas individuais e coletivas. Assim, certos símbolos não podem ser bem entendidos se não houve antes, ou ao mesmo tempo, o entendimento de símbolos diferentes. Daí a importância dos estudos de literatura, filosofia, de religiões e de história da arte e do mundo. Para que os arcanos sejam “inteiros” nas mãos leigas, faz-se necessária a longa jornada de pesquisa – das origens de tais signos e significantes, de suas migrações e transformações ao longo dos séculos e das diferentes concepções artísticas. Esta quarta condição, que acaba sendo rara e verdadeira qualidade, apenas se torna nítida com o passar do tempo, quando desenvolvida e concretizada a intimidade e o gosto por deitar as lâminas. Exige, portanto, coerência e visão global. É a interpretação da vida. A compreensão dos mecanismos que sustentam o espírito do universo – sobretudo o humano.

A quinta é a menos definível. Direi talvez, falando a uns, que é a graça, falando a outros, que é a mão do Superior Incógnito, falando a terceiros, que é o Conhecimento e Conversação do Santo Anjo da Guarda, entendendo cada uma destas coisas, que são a mesma da maneira como as entendem aqueles que delas usam, falando ou escrevendo.” Menos definível porque, como a Beleza, insinua-se para poucos; apenas para as almas despertas. Menos definível pois só é constatada quando se joga e quando se escreve. É a transcendência do tarô. O dom de manipular as palavras – escritas e faladas que nascem da observação das cenas ilustradas em cada peça. Augúrios e presságios que são sussurrados e afloram no tempo certo. Qualidade de quem decodifica seus símbolos mais íntimos e os respeita. Como cartas. Como vidas. Como divindades. Como magia. Como profissão. A própria adivinhação e as revelações que indicam o norte ao consulente. Rotas de orientação que quando contempladas, oferecem conselhos e escolhas. Ferramenta do destino, alegoria da imaginação.


REFERÊNCIAS E RECOMENDAÇÕES

LIVROS
Pessoa, Fernando. Mensagem. Coleção A Obra-Prima de Cada Autor.
Editora Martin Claret, São Paulo, 2007

Pessoa, Fernando. Poesias Ocultistas, 2ª edição.
Editora Aquariana, São Paulo, 1996.

SITES
Artigo de Izabel Margato, disponível na Cátedra/PUC-Rio.
Imagens sem legenda encontradas no deviantArt ou no Google Imagens.

NOTA PRELIMINAR
Apontamento de FP, s.d.; não assinado.
Leonardo Chioda

Dados sobre o poeta


Nome: Fernando António Nogueira Pessoa
Nascimento: 13-6-1888, Lisboa
Morte: 30-11-1935, Lisboa

Poeta, ficcionista, dramaturgo, filósofo, prosador, Fernando Pessoa é, inequivocamente, a mais complexa personalidade literária portuguesa e europeia do século XX. Após a morte do pai, partiu com sete anos para a África do Sul onde o seu padrasto ocupava o cargo de cônsul interino. Durante os dez anos que aí viveu, realizou com distinção os estudos liceais e redigiu alguns dos seus primeiros textos poéticos, atribuídos a pseudónimos, entre os quais se salienta o de Alexander Search. Com dezassete anos, abandona a família e regressa a Portugal, com a intenção de ingressar no Curso Superior de Letras. Em Lisboa, acaba por abandonar os estudos, sobrevive como correspondente comercial de inglês e dedica-se a uma vida literária intensa. Desenvolve colaboração com publicações (algumas delas dirigidas por si) como A República, Teatro, A Águia, A Renascença, Eh Real, O Jornal, A Capital, Exílio, Centauro, Portugal Futurista, Athena, Contemporânea, Revista Portuguesa, Presença, O Imparcial, O Mundo Português, Sudoeste, Momento. Com Mário de Sá-Carneiro e Almada Negreiros, entre outros, leva, em 1915, a cabo o projecto de Orpheu, revista que assinala a afirmação do modernismo português e cujo impacto cultural e literário só pôde cabalmente ser avaliado por gerações posteriores. Tendo publicado em vida, em volume, apenas os seus poemas ingleses e o poema épico Mensagem, a bibliografia que legou à contemporaneidade é de tal forma extensa que o conhecimento da sua obra se encontra em curso, sendo alargado ou aprofundado à medida que vão saindo para o prelo os textos que integram um vastíssimo espólio. Mais do que a dimensão dessa obra, cujos contornos ainda não são completamente conhecidos, profícua em projectos literários, em esboços de planos, em versões de textos, em interpretações e reflexões sobre si mesma, impõe-se, porém, a complexidade filosófica e literária de que se reveste. Dificilmente se pode chegar a sínteses simplistas diante de um autor que, além da obra assinada com o seu próprio nome, criou vários autores aparentemente autónomos e quase com existência real, os heterónimos, de que se destacam - o seu número eleva-se às dezenas - Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Alberto Caeiro, cada um deles portador de uma identidade própria; de uma arte poética distinta; de uma evolução literária pessoal e ainda capazes de comentar as relações literárias e pessoais que estabelecem entre si. A esta poderosa mistificação acresce ainda a obra multifacetada do seu criador, que recobre vários géneros (teatro, poesia lírica e épica, prosa doutrinária e filosófica, teorização literária, narrativa policial, etc.), vários interesses (ocultismo, nacionalismo, misticismo, etc.) e várias correntes literárias (todas por si criadas e teorizadas, como o paulismo, o interseccionismo ou o sensacionismo). Elevando-se aos milhares de milhares as páginas já publicadas sobre a obra de Fernando Pessoa, e, muito particularmente, sobre o fenómeno da heteronímia, uma das premissas a ter em conta quando se aborda o universo pessoano é, como alerta Eduardo Lourenço, não cair no equívoco de "tomar Caeiro, Campos e Reis como fragmentos de uma totalidade que convenientemente interpretados e lidos permitiriam reconstituí-la ou pelo menos entrever o seu perfil global. A verdade é mais simples: os heterónimos são a Totalidade fragmentada [...]. Por isso mesmo e por essência não têm leitura individual, mas igualmente não têm dialéctica senão na luz dessa Totalidade de que não são partes, mas plurais e hierarquizadas maneiras de uma única e decisiva fragmentação. (p. 31) Avaliando a posteriori o significado global dessa aventura literária extraordinária revestem-se de particular relevo, como aspectos subjacentes a essas múltiplas realizações e a essa Totalidade entrevista, entre outros, o sentido de construtividade do poema (ou melhor, dos sistemas poéticos) e a capacidade de despersonalização obtida pela relação de reciprocidade estabelecida entre intelectualização e emoção. Nessa medida, a obra de Fernando Pessoa constitui uma referência incontornável no processo que conduz à afirmação da modernidade, nomeadamente pela subordinação da criação literária a um processo de fingimento que, segundo Fernando Guimarães, "representa o esbatimento da subjectividade que conduzirá à poesia dramática dos heterónimos, à procura da complexidade entendida como emocionalização de uma ideia e intelectualização de uma emoção, à admissão da essencialidade expressiva da arte" bem como à "valorização da própria estrutura das realizações literárias" (cf. O Modernismo Português e a sua Poética, Porto, Lello, 1999, p. 61). Deste modo, a poesia de Fernando Pessoa "Traçou pela sua própria existência o quadro dentro do qual se move a dialéctica mesma da nossa Modernidade", constituindo a matriz de uma filiação textual particularmente nítida à medida que a sua obra, e a dos heterónimos, ia, ao longo da década de 40, sendo descoberta e editada, a tal ponto que, a partir da sua aventura poética, se tornou impossível "escrever poesia como se a sua experiência não tivesse tido lugar." (LOURENÇO, Eduardo, cit. por MARTINHO, Fernando J. B. - Pessoa e a Moderna Poesia Portuguesa - do "Orpheu" a 1960, Lisboa, 1983, p. 157.)

Bibliografia: 35 Sonnets, Lisboa, 1918; English Poems, I, II e III, Lisboa, 1921; Mensagem, Lisboa, 1934; Obras Completas, 11 vols., Ática, 1942-80; Obra Poética (org., intr., e notas de Maria Aliete Galhoz), Rio de Janeiro, 1965; Obras em Prosa (org., intr., e notas de Cleonice Berardinelli), Rio de Janeiro, 1974; Obra Poética e em Prosa, (org. intr. bibli. e not. de António Quadros), 17. vols, Lisboa, 1985-86, 3 vols, Porto, 1986. Edições Críticas da Obra de Fernando Pessoa: Fernando Pessoa-Ricardo Reis: Os Originais, as Edições, o Cânone das Odes (org. e apres. Silva Belkior), 1983; O Manuscrito de O Guardador de Rebanhos (edição fac-similada com texto crítico de Ivo Castro), Lisboa, 1986; Texto Crítico das Odes de F. Pessoa-Ricardo Reis: tradição impressa revista e inéditos (notas e comen. de Silva Belkior), Lisboa, 1988; A Passagem das Horas de Álvaro de Campos (edição crítica de Cleonice Berardinelli), Lisboa, 1988; Edição Crítica de Fernando Pessoa, vol. II, Poemas de Álvaro de Campos (edição crítica de Cleonice Berardinelli), 1990, reed., aum. e corr. 1992; Álvaro de Campos - Livro de Versos (ed. crítica org. e apres. por Teresa Rita Lopes), Lisboa, 1993; Edição Crítica de Fernando Pessoa, volume V, Poemas Ingleses, tomo I (ed. João Dionísio), 1993; Mensagem - Poemas Esotéricos (edição crítica e coord. José Augusto Seabra), Madrid, 1993; Edição Crítica de Fernando Pessoa, vol. III, Poemas de Ricardo Reis (edição crítica por Luis Fagundes Teles), Lisboa, 1994; Poemas Completos de Alberto Caeiro prefácio de Ricardo Reis posfácio de Álvaro de Campos (recolha, transcrição e notas de Teresa Sobral Cunha, posfácio de Luís de Sousa Rebelo), 1994; Edição Crítica de Fernando Pessoa, volume I, Poemas de Fernando Pessoa: Quadras (ed. Luís Prista), Lisboa, 1997; Edição Crítica de Fernando Pessoa, volume V, Poemas Ingleses, tomo II (ed. João Dionísio), 1997; Edição Crítica de Fernando Pessoa, volume V, Poemas Ingleses, tomo III (ed. Marcus Angioni e Fernando Gomes), 1999. Edição Crítica de Fernando Pessoa, volume I, Poemas de Fernando Pessoa, 1934-1935, tomo V, (ed. Luís Prista), Lisboa, 2000.Correspondência: Cartas a Armando Cortes-Rodrigues (intr. e ed. Joel Serrão), Lisboa, 1944, reed. 1960; Cartas a João Gaspar Simões (editadas e prefaciadas pelo destinatário), Lisboa, 1957, reed. 1988; Cartas de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, 2 vols., Lisboa, 1958-59; Cartas de Amor de F. Pessoa, vol. I (org. e pref. Urbano Tavares Rodrigues), Lisboa, 1958; (org., posfác. e notas de D. Mourão-Ferreira, estabelecimento do texto e preâmbulo de Maria da Graça Queirós), 2 vols., Lisboa, Ática, 1978; Correspondência inédita de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa (leitura, intr. e notas de Arnaldo Saraiva), Porto, 1980; Cartas de Amor de Ofélia a Fernando Pessoa (org. de Manuela Nogueira e Maria da Conceição Azevedo), Assírio e Alvim, 1996; Correspondência Inédita, (org. e notas Manuela Parreira da Silva, pref. Teresa Rita Lopes), Lisboa, 1996; Correspondência (1923-1935) (ed. Manuela Parreira da Silva), Lisboa, Assírio e Alvim, 1999; Correspondência (1902-1934) (ed. Manuela Parreira da Silva), Lisboa, 2000




Fernando Pessoa. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2006. [Consult. 2006-11-06].
Disponível na www: .