terça-feira, 4 de novembro de 2008
Espólio de Fernando Pessoa classificado património nacional
A obra de Fernando Pessoa vai ser classificada de património nacional, não podendo, por isso, sair do país.
A Biblioteca Nacional já começou a nacionalizar o espólio do poeta. Para a directora da Casa Pessoa esta é uma óptima notícia. Inês Pedrosa diz que não faz sentido que a obra pessoana esteja dispersa.
Já para os herdeiros de Pessoa, a classificação dos manuscritos do poeta, como património pessoal, é uma "ridicularia política", como avançaram à Lusa.
A directora da Casa Fernando Pessoa diz que não classificar o espólio pessoano seria como se o Governo não se preocupasse com os Jerónimos.
O ministério da Cultura já tinha lembrado aos herdeiros que existem mecanismos legais para que a obra de Pessoa não possa sair do país. Hoje a biblioteca nacional começou a nacionalizar o espólio pessoano.
segunda-feira, 3 de novembro de 2008
mais uma biografia de Pessoa
Seu pai, de ascendência judia, foi crítico musical do Diário de Notícias e faleceu em 1893. Sua mãe, de família açoriana, casou dois anos depois com o comandante João Miguel Rosa, cônsul de Portugal em Durban, na África do Sul. Nesta cidade sul-africana, Fernando Pessoa fez os estudos primários e secundários e freqüentou uma escola comercial. Em agosto de 1905, regressou a Lisboa, matriculando-se no Curso Superior de Letras, que freqüentou pouco tempo. Após uma fracassada tentativa no campo dos negócios, passou, em 1908, a assegurar sua subsistência fazendo correspondência estrangeira, sobretudo inglesa, para casas comerciais. Viveu num círculo muito restrito, fechado ao amor (namorou em 1920 uma datilógrafa) e sem ambições (recusou o convite para ensinar Língua e Literatura Inglesas na Universidade de Coimbra e deixou inédita a quase totalidade de sua gigantesca obra literária). Levou uma existência apagada, buscando a evasão na multiplicidade de suas criações literárias e no abuso do álcool, que lhe causou a cirrose hepática que o vitimou. De 1903 a 1909, compôs poemas em inglês e, em dezembro de 1904, fez sua estréia literária com um ensaio sobre Macauly, publicado na revista da Durban High School. Em 1912, iniciou sua colaboração na revista A Águia, órgão do saudosismo de Teixeira de Pascoaes. É de 1913 seu primeiro poema em português, intitulado "Pauis", que marca o início do modernismo nas letras portuguesas; em 1914, concebeu os heterônimos, sendo os principais Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis. Em abril de 1915, com Mário de Sá-Carneiro e Luís de Montalvor, lançou a revista Orpheu (da qual só foram editados dois números), que fez vingar o modernismo. Colaborou nas revistas Portugal Futurista (1917), Contemporânea (1922-1926), que dirigiu com José Pacheco, e Atena (1924-1925), de que foi diretor com Rui Vaz. Para concorrer ao Prêmio Antero de Quental, de um órgão oficial, publicou seu único livro de poemas em português, a que deu o nome Mensagem (1934): obteve o prêmio, mas na categoria B, porque o livro não atingiu o número de páginas requerido para a categoria A. Os escritos em prosa constam de ensaios estéticos e literários, textos filosóficos, páginas íntimas e cartas, salientando-se O Livro do Desassossego, atribuído ao semi-heterônimo Bernardo Soares. Sua obra poética, na maioria publicada postumamente, caracteriza-se por um absoluto predomínio da inteligência sobre a atrofia da vontade e do sentimento, inteligência que, para melhor exprimir a sua atitude perante a vida, recorreu à multiplicidade dos heterônimos, sendo estes, de fato, não as múltiplas facetas de um poeta dotado de uma compreensão englobante, mas a expressão de uma totalidade fragmentada sob a roupagem de múltiplos estilos personificados. Figura importantíssima do modernismo literário, ninguém como ele influenciou as gerações posteriores de poetas tanto em Portugal como no Brasil, ao mesmo tempo em que sua obra se afirmava progressivamente como uma das mais importantes da literatura do século XX.
Pessoa era contra o salazarismo e combateu-o
Simpatizante inicial do salazarismo, Fernando Pessoa distancia-se e empenha-se em combatê-lo, estando a expressão literária dessa luta patente num livro a lançar sexta-feira em Coimbra, por iniciativa do docente António Apolinário Lourenço.
«Contra Salazar», publicado pela Angelus Novus Editora, reúne em 146 páginas «tudo o que Fernando Pessoa escreveu contra Salazar», em poema, prosa e em cartas, surgindo agora ao público, quando se evocam os 120 anos do nascimento do poeta e 40 anos após o afastamento do ditador na sequência das sequelas da queda de uma cadeira, que iriam provocar a sua morte.
«A reunião de todos estes textos de Fernando Pessoa permite comprovar a profundidade e a radicalidade da oposição do poeta a António de Oliveira Salazar. Nessa oposição está patente o rancor pessoal, mas também a censura política contra o carácter ditatorial e fascizante do regime«, declarou à agência Lusa o docente da Faculdade de Letras de Coimbra, que este ano publicou também uma edição anotada de »Mensagem«.
Segundo o organizador da colectânea, »o primeiro sinal de distanciamento de Pessoa face ao regime saído do golpe militar de 28 de Maio de 1926 - que o poeta expressamente apoiara num opúsculo de 1928 - aparece em dois textos de 1930, que constituem a sua resposta à constituição da União Nacional«.
A ruptura - acrescenta - acentua-se com a publicação em 4 de Fevereiro de 1935, no Diário de Lisboa, de um artigo de Fernando Pessoa, intitulado »Associações Secretas«, em que o poeta manifesta a sua oposição a um projecto de lei do deputado José Cabral, apresentado na Assembleia Nacional, que visava a proibição da Maçonaria.
Noutros trechos da obra, Pessoa afirma que »o argumento essencial contra uma ditadura é que ela é ditadura«. Num outro reprova o facto de Salazar ter transformado uma ditadura à Primo de Rivera numa ditadura à Mussolini; ou outro ainda em que se queixa de ter sido vítima de um acto de censura.
«Contra Salazar», publicado pela Angelus Novus Editora, reúne em 146 páginas «tudo o que Fernando Pessoa escreveu contra Salazar», em poema, prosa e em cartas, surgindo agora ao público, quando se evocam os 120 anos do nascimento do poeta e 40 anos após o afastamento do ditador na sequência das sequelas da queda de uma cadeira, que iriam provocar a sua morte.
«A reunião de todos estes textos de Fernando Pessoa permite comprovar a profundidade e a radicalidade da oposição do poeta a António de Oliveira Salazar. Nessa oposição está patente o rancor pessoal, mas também a censura política contra o carácter ditatorial e fascizante do regime«, declarou à agência Lusa o docente da Faculdade de Letras de Coimbra, que este ano publicou também uma edição anotada de »Mensagem«.
Segundo o organizador da colectânea, »o primeiro sinal de distanciamento de Pessoa face ao regime saído do golpe militar de 28 de Maio de 1926 - que o poeta expressamente apoiara num opúsculo de 1928 - aparece em dois textos de 1930, que constituem a sua resposta à constituição da União Nacional«.
A ruptura - acrescenta - acentua-se com a publicação em 4 de Fevereiro de 1935, no Diário de Lisboa, de um artigo de Fernando Pessoa, intitulado »Associações Secretas«, em que o poeta manifesta a sua oposição a um projecto de lei do deputado José Cabral, apresentado na Assembleia Nacional, que visava a proibição da Maçonaria.
Noutros trechos da obra, Pessoa afirma que »o argumento essencial contra uma ditadura é que ela é ditadura«. Num outro reprova o facto de Salazar ter transformado uma ditadura à Primo de Rivera numa ditadura à Mussolini; ou outro ainda em que se queixa de ter sido vítima de um acto de censura.
Estou cansado da inteligência
Estou cansado da inteligência.
Pensar faz mal às emoções.
Uma grande reacção aparece.
Chora-se de repente, e todas as tias mortas fazem chá de novo
Na casa antiga da quinta velha.
Pára, meu coração!
Sossega, minha esperança fictícia!
Quem me dera nunca ter sido senão o menino que fui…
Meu sono bom porque tinha simplesmente sono e não ideias que esquecer!
Meu horizonte de quintal e praia!
Meu fim antes do princípio!
Estou cansado da inteligência.
Se ao menos com ela se apercebesse qualquer coisa!
Mas só percebo um cansaço no fundo, como baixam na taça
Aquelas coisas que o vinho tem e amodorram o vinho.
18 - 6 - 1930
Pensar faz mal às emoções.
Uma grande reacção aparece.
Chora-se de repente, e todas as tias mortas fazem chá de novo
Na casa antiga da quinta velha.
Pára, meu coração!
Sossega, minha esperança fictícia!
Quem me dera nunca ter sido senão o menino que fui…
Meu sono bom porque tinha simplesmente sono e não ideias que esquecer!
Meu horizonte de quintal e praia!
Meu fim antes do princípio!
Estou cansado da inteligência.
Se ao menos com ela se apercebesse qualquer coisa!
Mas só percebo um cansaço no fundo, como baixam na taça
Aquelas coisas que o vinho tem e amodorram o vinho.
18 - 6 - 1930
cul de lampe
Pouco a pouco,
Sem que qualquer coisa me falte,
Sem que qualquer coisa me sobre,
Sem que qualquer coisa esteja exactamente na mesma posição,
Vou andando parado,
Vou vivendo morrendo,
Vou sendo eu através de uma quantidade de gente sem ser.
Vou sendo tudo menos eu.
Acabei.
Pouco a pouco,
Sem que ninguém me falasse
(Que importa tudo quanto me tem sido dito na vida?)
Sem que ninguém me escutasse
(Que importa quanto disse e me ouviram dizer?)
Sem que ninguém me quisesse
(Que importa o que disse quem me disse que queria?),
Muito bem…
Pouco a pouco,
Sem nada disso,
Sem nada que não seja isso,
Vou parando,
Vou parar,
Acabei
Qual acabei!
Estou farto de sentir e de fingir em pensar,
E não acabei ainda.
Ainda estou a escrever versos.
Ainda estou a escrever.
Ainda estou.
(Não, não vou acabar
Ainda…
Não vou acabar.
Acabei.)
Subitamente, na rua transversal, uma janela no alto e que vulto nela?
E o horror de ter perdido a infância em que ali não estive
E o caminho vagabundo da minha consciência inexequível.
Que mais querem? Acabei.
Nem falta o canário da vizinha, ó manhã de outro tempo,
Nem o som (cheio de cesto) do padeiro na escada
Nem os pregões que não sei já onde estão —
Nem o enterro (ouço as vozes) na rua,
Nem o trovão súbito da madeira das tabuinhas de defronte no ar de verão,
Nem… quanta coisa, quanta alma, quanto irreparável!
Afinal, agora, tudo cocaína…
Meu amor infância!
Meu passado bibe!
Meu repouso pão com manteiga boa à janela!
Basta, que já estou cego para o que vejo!
Arre, acabei!
Basta!
2 - 7 - 1930
In Poesia , Assírio & Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002
Sem que qualquer coisa me falte,
Sem que qualquer coisa me sobre,
Sem que qualquer coisa esteja exactamente na mesma posição,
Vou andando parado,
Vou vivendo morrendo,
Vou sendo eu através de uma quantidade de gente sem ser.
Vou sendo tudo menos eu.
Acabei.
Pouco a pouco,
Sem que ninguém me falasse
(Que importa tudo quanto me tem sido dito na vida?)
Sem que ninguém me escutasse
(Que importa quanto disse e me ouviram dizer?)
Sem que ninguém me quisesse
(Que importa o que disse quem me disse que queria?),
Muito bem…
Pouco a pouco,
Sem nada disso,
Sem nada que não seja isso,
Vou parando,
Vou parar,
Acabei
Qual acabei!
Estou farto de sentir e de fingir em pensar,
E não acabei ainda.
Ainda estou a escrever versos.
Ainda estou a escrever.
Ainda estou.
(Não, não vou acabar
Ainda…
Não vou acabar.
Acabei.)
Subitamente, na rua transversal, uma janela no alto e que vulto nela?
E o horror de ter perdido a infância em que ali não estive
E o caminho vagabundo da minha consciência inexequível.
Que mais querem? Acabei.
Nem falta o canário da vizinha, ó manhã de outro tempo,
Nem o som (cheio de cesto) do padeiro na escada
Nem os pregões que não sei já onde estão —
Nem o enterro (ouço as vozes) na rua,
Nem o trovão súbito da madeira das tabuinhas de defronte no ar de verão,
Nem… quanta coisa, quanta alma, quanto irreparável!
Afinal, agora, tudo cocaína…
Meu amor infância!
Meu passado bibe!
Meu repouso pão com manteiga boa à janela!
Basta, que já estou cego para o que vejo!
Arre, acabei!
Basta!
2 - 7 - 1930
In Poesia , Assírio & Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002
Ah, os primeiros minutos dos cafés de novas cidades!
Ah, os primeiros minutos dos cafés de novas cidades!
A chegada pela manhã a cais ou a gares
Cheios de um silêncio repousado e claro!
Os primeiros passantes nas ruas das cidades a que se chega…
E o som especial que o correr das horas tem nas viagens…
Os ómnibus ou os eléctricos ou os automóveis…
O novo aspecto das ruas de novas terras…
A paz que parecem ter para a nossa dor
O bulício alegre para a nossa tristeza
A falta de monotonia para o nosso coração cansado!...
As praças nitidamente quadradas e grandes,
As ruas com as casas que se aproximam ao fim,
As ruas transversais revelando súbitos interesses,
E através disto tudo, como uma coisa que inunda e nunca transborda,
O movimento, o movimento
Rápida coisa colorida e humana que passa e fica…
Os portos com navios parados,
Excessivamente navios parados,
Com barcos pequenos ao pé, esperando…
A chegada pela manhã a cais ou a gares
Cheios de um silêncio repousado e claro!
Os primeiros passantes nas ruas das cidades a que se chega…
E o som especial que o correr das horas tem nas viagens…
Os ómnibus ou os eléctricos ou os automóveis…
O novo aspecto das ruas de novas terras…
A paz que parecem ter para a nossa dor
O bulício alegre para a nossa tristeza
A falta de monotonia para o nosso coração cansado!...
As praças nitidamente quadradas e grandes,
As ruas com as casas que se aproximam ao fim,
As ruas transversais revelando súbitos interesses,
E através disto tudo, como uma coisa que inunda e nunca transborda,
O movimento, o movimento
Rápida coisa colorida e humana que passa e fica…
Os portos com navios parados,
Excessivamente navios parados,
Com barcos pequenos ao pé, esperando…
A rapariga inglesa
A rapariga inglesa, tão loura, tão jovem, tão boa
Que queria casar comigo…
Que pena eu não ter casado com ela…
Teria sido feliz
Mas como é que eu sei se teria sido feliz?
Como é que eu sei qualquer coisa a respeito do que teria sido
Do que teria sido, que é o que nunca foi?
Hoje arrependo-me de não ter casado com ela,
Mas antes que até a hipótese de me poder arrepender de ter casado com ela.
E assim é tudo arrependimento,
E o arrependimento é pura abstracção.
Dá um certo desconforto
Mas também dá um certo sonho…
Sim, aquela rapariga foi uma oportunidade da minha alma.
Hoje o arrependimento é que é afastado da minha alma.
Santo Deus! que complicação por não ter casado com uma inglesa que já
me deve ter esquecido!...
Mas se não me esqueceu?
Se (porque há disso) me lembra ainda e é constante
Escuso de me achar feio, porque os feios também são amados
E às vezes por mulheres!)
Se não me esqueceu, ainda me lembra.
Isto realmente, é já outra espécie de arrependimento.
E fazer sofrer alguém não tem esquecimento.
Mas, afinal, isto são conjecturas da vaidade.
Bem se há-de ela lembrar de mim, com o quarto filho nos braços,
Debruçada sobre o Daily Mirror a ver a Princesa Maria.
Pelo menos é melhor pensar que é assim.
É um quadro de casa suburbana inglesa,
É uma boa paisagem íntima de cabelos louros,
E os remorsos são sombras…
Em todo o caso, se assim é, fica um bocado de ciúme.
O quarto filho do outro, o Daily Mirror na outra casa.
O que podia ter sido…
Sim, sempre o abstracto, o impossível, o irreal mas perverso —
O que podia ter sido.
Comem marmelada ao pequeno-almoço em Inglaterra…
Vingo-me em toda a burguesia inglesa de ser um parvo português.
Ah, mas ainda vejo
O teu olhar realmente tão sincero como azul
A olhar como uma outra criança para mim…
E não é com piadas de sal do verso que te apago da imagem
Que tens no meu coração;
Não te disfarço, meu único amor, e não quero nada da vida.
Que queria casar comigo…
Que pena eu não ter casado com ela…
Teria sido feliz
Mas como é que eu sei se teria sido feliz?
Como é que eu sei qualquer coisa a respeito do que teria sido
Do que teria sido, que é o que nunca foi?
Hoje arrependo-me de não ter casado com ela,
Mas antes que até a hipótese de me poder arrepender de ter casado com ela.
E assim é tudo arrependimento,
E o arrependimento é pura abstracção.
Dá um certo desconforto
Mas também dá um certo sonho…
Sim, aquela rapariga foi uma oportunidade da minha alma.
Hoje o arrependimento é que é afastado da minha alma.
Santo Deus! que complicação por não ter casado com uma inglesa que já
me deve ter esquecido!...
Mas se não me esqueceu?
Se (porque há disso) me lembra ainda e é constante
Escuso de me achar feio, porque os feios também são amados
E às vezes por mulheres!)
Se não me esqueceu, ainda me lembra.
Isto realmente, é já outra espécie de arrependimento.
E fazer sofrer alguém não tem esquecimento.
Mas, afinal, isto são conjecturas da vaidade.
Bem se há-de ela lembrar de mim, com o quarto filho nos braços,
Debruçada sobre o Daily Mirror a ver a Princesa Maria.
Pelo menos é melhor pensar que é assim.
É um quadro de casa suburbana inglesa,
É uma boa paisagem íntima de cabelos louros,
E os remorsos são sombras…
Em todo o caso, se assim é, fica um bocado de ciúme.
O quarto filho do outro, o Daily Mirror na outra casa.
O que podia ter sido…
Sim, sempre o abstracto, o impossível, o irreal mas perverso —
O que podia ter sido.
Comem marmelada ao pequeno-almoço em Inglaterra…
Vingo-me em toda a burguesia inglesa de ser um parvo português.
Ah, mas ainda vejo
O teu olhar realmente tão sincero como azul
A olhar como uma outra criança para mim…
E não é com piadas de sal do verso que te apago da imagem
Que tens no meu coração;
Não te disfarço, meu único amor, e não quero nada da vida.
Qualquer coisa de obscuro permanece
Qualquer coisa de obscuro permanece
No centro do meu ser. Se me conheço,
É até onde, por fim mal, tropeço
No que de mim em mim de si se esquece.
Aranha absurda que uma teia tece
Feita de solidão e de começo
Fruste, meu ser anónimo confesso
Próprio e em mim mesmo a externa treva desce.
Mas, vinda dos vestígios da distância
Ninguém trouxe ao meu pálio por ter gente
Sob ele, um rasgo de saudade ou ânsia.
Remiu-se o pecador impenitente
À sombra e cisma. Teve a eterna infância,
Em que comigo forma um mesmo ente.
Fernando Pessoa
No centro do meu ser. Se me conheço,
É até onde, por fim mal, tropeço
No que de mim em mim de si se esquece.
Aranha absurda que uma teia tece
Feita de solidão e de começo
Fruste, meu ser anónimo confesso
Próprio e em mim mesmo a externa treva desce.
Mas, vinda dos vestígios da distância
Ninguém trouxe ao meu pálio por ter gente
Sob ele, um rasgo de saudade ou ânsia.
Remiu-se o pecador impenitente
À sombra e cisma. Teve a eterna infância,
Em que comigo forma um mesmo ente.
Fernando Pessoa
Não sei o que ter possa de verdade
Não sei o que ter possa de verdade
Do visto mundo a não-verdade triste
Ou que fruto, na planta em flor, resiste
Desconhecido até à realidade.
Como arco-íris que da chuva atravessa
Terra e céu frescos, após a bonança,
Real ou não, já cruza a esperança
O momento da nossa dor que cessa.
Mas se a dor real como mal é tida
Na esp'rança temos um melhor penhor;
Já que não devia a dor ser sentida,
P'ra procurar o homem tem motivo,
Se o Tempo se mede por idade e dor,
Que os prazeres do Tempo um melhor abrigo.
Fernando Pessoa, Poesia Inglesa, in Poemário, Assírio e Alvim
Do visto mundo a não-verdade triste
Ou que fruto, na planta em flor, resiste
Desconhecido até à realidade.
Como arco-íris que da chuva atravessa
Terra e céu frescos, após a bonança,
Real ou não, já cruza a esperança
O momento da nossa dor que cessa.
Mas se a dor real como mal é tida
Na esp'rança temos um melhor penhor;
Já que não devia a dor ser sentida,
P'ra procurar o homem tem motivo,
Se o Tempo se mede por idade e dor,
Que os prazeres do Tempo um melhor abrigo.
Fernando Pessoa, Poesia Inglesa, in Poemário, Assírio e Alvim
Literatura: I Congresso Internacional Fernando Pessoa encerra comemorações dos 120 anos do poeta
Lisboa, 17 Out (Lusa) - A Casa Fernando Pessoa realiza de 25 a 28 de Novembro, em Lisboa, o I Congresso Internacional Fernando Pessoa, uma iniciativa que criará um diálogo entre especialistas na obra do escritor e poetas, pintores e cineastas que nela se inspiram.
O ensaísta Eduardo Lourenço vai proferir a conferência inaugural neste congresso que encerra as comemorações dos 120 anos do autor do "Livro do Desassossego".
"Os segredos revelados pelas anotações marginais de Pessoa à sua própria biblioteca, os pontos de contacto entre a obra de Pessoa e a de outros génios da literatura (como o Padre António Vieira, Shakespeare, Joyce ou Yeats), as relações entre Pessoa e a psicanálise ou as suas ligações à astrologia serão outros temas abordados neste Congresso", indica uma nota da Casa Fernando Pessoa.
O Congresso, que vai decorrer no Auditório do Turismo de Lisboa, contará com as participações de Antonio Cicero, Arnaldo Saraiva, Fernando Cabral Martins, Fernando Pinto do Amaral, Jerónimo Pizarro, Ivo Castro, João Botelho, José Blanco e Júlio Pomar.
Nuno Júdice, Paulo Cardoso, Fernando J.B. Martinho, Antonio Saéz Delgado, Richard Zenith, Manuela Nogueira e Teresa Rita Lopes são outros dos participantes.
O Congresso inclui ainda um espectáculo de Camané que vai cantar fados com poemas de Pessoa.
Fernando Pessoa nasceu em Junho de 1888 e morreu em 1935.
EO.
Lusa/Fim
Congresso em Novembro encerra comemorações do nascimento do escritor
As comemorações dos 120 anos do nascimento do autor do «Livro do Desassossego» encerram com o I Congresso Internacional Fernando Pessoa, no Auditório do Turismo de Lisboa, Rua do Arsenal Nº 15, entre os dias 25 e 28 de Novembro
A singularidade deste Congresso, promovido pela Casa Fernando Pessoa, “é a de criar um diálogo entre os especialistas da obra de Pessoa e os criadores que nela se inspiram – poetas, pintores, cineastas”.
O professor Eduardo Lourenço proferirá a conferência inaugural, às 10h30 de dia 25 de Novembro.
Os segredos revelados pelas anotações marginais de Pessoa à sua própria biblioteca, os pontos de contacto entre a obra de Pessoa e a de outros génios da literatura (como o Padre António Vieira, Shakespeare, Joyce ou Yeats), as relações entre Pessoa e a psicanálise ou as suas ligações à astrologia serão outros temas abordados neste Congresso.
Entre os muitos congressistas portugueses e estrangeiros que se deslocam para este encontro, destacam-se as presenças de Antonio Cicero, Antonio Saéz Delgado, Anna Klobucka, Arnaldo Saraiva, Eucanaã Ferraz, Fernando Cabral Martins, Fernando J.B. Martinho, Fernando Pinto do Amaral, Gastão Cruz, Ivo Castro, Jerónimo Pizarro, João Botelho, José Blanco, José Gil, Júlio Pomar, Ken Krabbennhoft, Leyla Perrone-Moisés, Manuela Nogueira, Maria Lúcia Dal Farra, Nuno Júdice, Paulo Cardoso, Patrick Quillier, Richard Zenith, Robert Bréchon e Teresa Rita Lopes.
O Congresso incluirá ainda um espectáculo de Camané, composto unicamente por fados com poemas de Pessoa, e uma versão teatral de «A Carta da Corcunda ao Serralheiro», de Fernando Pessoa, numa interpretação de Ângela Pinto.
TEMEC apresenta drama musical em Itu
Teatro Maestro Eliazar de Carvalho (TEMEC) apresentará, no dia 14 de novembro, às 20h30, um drama musical baseado no poema "Não Sei Quantas Almas Tenho" e as preliminares de "O Cancioneiro" de Fernando Pessoa.
A peça traz um espetáculo visual, literal e musical. Vítima de transtornos de personalidade, Fernando Pessoa canta suas crises enquanto personifica seus heterônimos mais conhecidos sob o vago, o vazio e o translúcido de seu existencialismo.
A proposta visual mostra "o nada" de quem não tem uma identidade, preso no seu próprio "cubo emocional", sem saídas. A cor neutra contrasta com as sombras projetadas que representam suas múltiplas personalidades. São suas únicas companheiras num universo retilíneo, na linha reta de um "pensamento distorcido" em diferentes vertentes sobre a poesia, o drama e a música. A proposta musical são poesias cantadas por piano e voz clássico, composições para o espetáculo com influência de fados portugueses.
Objetivo Cultural e Pedagógico
O texto reúne uma antologia poética de Fernando Pessoa que de forma única é interpretada. A música estabelece mais um conceito de arte coadjuvante como trilha ao espetáculo, tornando-o mais dinâmico enquanto às interpretações dos personagens abordados. Assim, pode-se unir dois públicos e propostas específicas diferentes: o entretenimento de forma geral e o apoio educacional e base literária no que se refere ao assunto..
O TEMEC está localizado na rua Cuiabá, 61, bairro Brasil.
A peça traz um espetáculo visual, literal e musical. Vítima de transtornos de personalidade, Fernando Pessoa canta suas crises enquanto personifica seus heterônimos mais conhecidos sob o vago, o vazio e o translúcido de seu existencialismo.
A proposta visual mostra "o nada" de quem não tem uma identidade, preso no seu próprio "cubo emocional", sem saídas. A cor neutra contrasta com as sombras projetadas que representam suas múltiplas personalidades. São suas únicas companheiras num universo retilíneo, na linha reta de um "pensamento distorcido" em diferentes vertentes sobre a poesia, o drama e a música. A proposta musical são poesias cantadas por piano e voz clássico, composições para o espetáculo com influência de fados portugueses.
Objetivo Cultural e Pedagógico
O texto reúne uma antologia poética de Fernando Pessoa que de forma única é interpretada. A música estabelece mais um conceito de arte coadjuvante como trilha ao espetáculo, tornando-o mais dinâmico enquanto às interpretações dos personagens abordados. Assim, pode-se unir dois públicos e propostas específicas diferentes: o entretenimento de forma geral e o apoio educacional e base literária no que se refere ao assunto..
O TEMEC está localizado na rua Cuiabá, 61, bairro Brasil.
Pessoa na China: O blogue do desassossego
Número de Documento: 8965838
Pequim, China 03/11/2008 10:32 (LUSA)
Temas: Artes, Cultura e Entretenimento, Literatura, Internet
Pequim, 03 Nov (Lusa) - O nome de um dos mais conhecidos blogues chineses é inspirado numa passagem de "O Livro do Desassossego", obra de Fernando Pessoa que já teve cinco edições na China.
É "O oitavo continente de Lian Yue", distinguido o ano passado pela Deustsche Welle (Rádio da Alemanha) como "o melhor blogue chinês".
"Pessoa e Kafka são dos escritores estrangeiros que mais admiro", disse à agência Lusa o autor do blogue, Lian Yue.
E comparando os dois, acrescenta: "Pessoa é mais moderno e criativo".
Lian Yue, 38 anos, formado em literatura chinesa, contou que descobriu Pessoa através de uma tradução de "O Livro do Desassossego" publicada por uma editora de Xangai em 1999.
Trata-se de uma obra assinada pelo heterónimo Bernardo Soares e onde Pessoa afirma a certa altura: "Não é nenhuma das sete partidas do mundo aquela que me interessa e posso verdadeiramente ver; a oitava partida é a que percorro e é a minha".
(Na edição chinesa, feita a partir da versão inglesa e não directamente do português, a palavra "partida" foi traduzida por "continente").
"Pessoa é brilhante. É um autor fora do comum e que mostra a beleza do mundo", diz Lian Yue.
Pessoa - "Pei Suo A", em chinês - é também o único autor português que Lian Yue conhece: "Há poucas traduções de escritores portugueses. De Portugal, o que se conhece melhor na China é o futebol".
O blogue de Lian Yue destacou-se em 2007 pela sua campanha contra a construção de uma fábrica de produtos químicos em Xiamen, que culminou com o cancelamento da obra, um resultado aclamado na blogosfera chinesa como "uma vitória da liberdade de expressão na China".
Em Março passado, a propósito das restrições impostas pelo governo chinês após os violentos incidentes no Tibete, "O oitavo continente de Lian Yue" proclamou que "qualquer poder que tente esconder informação deve ser encarado como um mau poder".
"A China é um país onde pessoas com sentimentos extremistas são os grandes apoiantes do poder e essas pessoas e esses sentimentos impedem o poder de se reformar a si próprio", afirmou Lian Yue.
Antigo jornalista do semanário Nanfang Zhoumo (Fim de Semana do Sul), um dos jornais mais irreverentes e populares da China, Lian Yue vive hoje dos artigos de opinião que assina em várias publicações.
"Não tenho problemas financeiros", diz.
Já publicou seis livros, entre os quais um romance e um ensaio sobre a Bíblia mas, em vez de escritor ou jornalista, prefere assumir-se como crítico social.
"Há vinte anos não havia espaço para criticar a sociedade. Hoje, o espaço é cada vez maior", afirma Lian Yue.
AC.
Lusa/Fim
quarta-feira, 8 de outubro de 2008
terça-feira, 7 de outubro de 2008
Literatura: "Weltliteratur" - uma exposição para ser lida na Gulbenkian
Lisboa, 29 Set (Lusa) - A exposição "Weltliteratur", que será inaugurada terça-feira na Fundação Gulbenkian, é para ser lida. Mostra textos, fotografias, documentos, quadros e vídeos e estabelece nexos entre eles.
Fernando Pessoa é a figura central desta exposição e logo à entrada está um recado para o escritor.
"Snr Pessoa Precisei de sair, está o jantar prompto é só sentar à mesa, tirar do lume e comer. Adelaide". Esta é a frase que se pode ler nas paredes brancas da entrada da primeira das 11 "salas" construídas para a exposição.
Logo a seguir, surgem fragmentos da obra de Pessoa, um deles descrevendo o Rossio em Lisboa, e numa fotografia ao lado pode ver-se o autor nas ruas da cidade.
O percurso que acolhe a exposição, comissariada pelo professor universitário António M. Feijó, foi concebido pelos arquitectos Manuel e Francisco Aires Mateus.
"Para nós é muito claro que esta exposição é sobre o prazer da leitura", afirmou Manuel Aires Mateus, sublinhando que Weltliteratur "é uma exposição para ler".
"Weltliteratur - Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o Mundo!" é a designação dada à mostra, associando uma expressão de Goethe a um verso de Cesário Verde.
"A exposição pretende mostrar que um texto só é legível dentro de um nexo de outros textos", afirmou António M. Feijó na apresentação da mostra.
Para o professor universitário, a exposição "é sobre Fernando Pessoa e alguns contemporâneos, alguns previsíveis, como é o caso de Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros, mas outros que o não são".
Teixeira de Pascoaes, "talvez o único par de Pessoa no século XX português", Camilo Pessanha, "que é de uma geração anterior", e Vitorino Nemésio, "que aparece como expoente de toda a grande poesia pós-Pessoa", são outros escritores com espaço em "Weltliteratur".
Há textos que mostram caracterizações de Portugal nos poemas épicos de Camões e Pessoa e outros que tratam a diferença sexual e apontam conflitos gramaticais.
A arte moderna é o tópico de uma das salas, que apresenta o quadro de Manet "O Rapaz das Cerejas", da colecção da Gulbenkian, associado à escrita de Baudelaire, que conta o que de terrível aconteceu ao rapaz retratado.
O mar é apresentado num excerto do filme de Manoel de Oliveira "Cristóvão Colombo - O Enigma" e num outro filme sobre a frota portuguesa de pesca no Árctico.
Uma das salas mostra correspondência e poemas de Mário de Sá-Carneiro, uma outra expõe poemas e cartas de Camilo Pessanha e um outro momento da exposição mistura a obra plástica e literária de José de Almada Negreiros.
A terminar a exposição surgem textos de Fernando Pessoa e Teixeira de Pascoaes.
"Weltliteratur" estará na galeria de exposições temporárias da Gulbenkian de 30 de Setembro a 4 de Janeiro e, coincidindo com a mostra, a Gulbenkian organiza um ciclo de 18 conferências em que várias personalidades de diferentes áreas são convidadas a falar de literatura.
O escritor V. S. Naipaul, galardoado com o Prémio Nobel da Literatura, é um dos convidados e dará uma conferência no dia 22 de Novembro.
EO.
Lusa/fim
keywords: cultura
Fernando Pessoa é a figura central desta exposição e logo à entrada está um recado para o escritor.
"Snr Pessoa Precisei de sair, está o jantar prompto é só sentar à mesa, tirar do lume e comer. Adelaide". Esta é a frase que se pode ler nas paredes brancas da entrada da primeira das 11 "salas" construídas para a exposição.
Logo a seguir, surgem fragmentos da obra de Pessoa, um deles descrevendo o Rossio em Lisboa, e numa fotografia ao lado pode ver-se o autor nas ruas da cidade.
O percurso que acolhe a exposição, comissariada pelo professor universitário António M. Feijó, foi concebido pelos arquitectos Manuel e Francisco Aires Mateus.
"Para nós é muito claro que esta exposição é sobre o prazer da leitura", afirmou Manuel Aires Mateus, sublinhando que Weltliteratur "é uma exposição para ler".
"Weltliteratur - Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o Mundo!" é a designação dada à mostra, associando uma expressão de Goethe a um verso de Cesário Verde.
"A exposição pretende mostrar que um texto só é legível dentro de um nexo de outros textos", afirmou António M. Feijó na apresentação da mostra.
Para o professor universitário, a exposição "é sobre Fernando Pessoa e alguns contemporâneos, alguns previsíveis, como é o caso de Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros, mas outros que o não são".
Teixeira de Pascoaes, "talvez o único par de Pessoa no século XX português", Camilo Pessanha, "que é de uma geração anterior", e Vitorino Nemésio, "que aparece como expoente de toda a grande poesia pós-Pessoa", são outros escritores com espaço em "Weltliteratur".
Há textos que mostram caracterizações de Portugal nos poemas épicos de Camões e Pessoa e outros que tratam a diferença sexual e apontam conflitos gramaticais.
A arte moderna é o tópico de uma das salas, que apresenta o quadro de Manet "O Rapaz das Cerejas", da colecção da Gulbenkian, associado à escrita de Baudelaire, que conta o que de terrível aconteceu ao rapaz retratado.
O mar é apresentado num excerto do filme de Manoel de Oliveira "Cristóvão Colombo - O Enigma" e num outro filme sobre a frota portuguesa de pesca no Árctico.
Uma das salas mostra correspondência e poemas de Mário de Sá-Carneiro, uma outra expõe poemas e cartas de Camilo Pessanha e um outro momento da exposição mistura a obra plástica e literária de José de Almada Negreiros.
A terminar a exposição surgem textos de Fernando Pessoa e Teixeira de Pascoaes.
"Weltliteratur" estará na galeria de exposições temporárias da Gulbenkian de 30 de Setembro a 4 de Janeiro e, coincidindo com a mostra, a Gulbenkian organiza um ciclo de 18 conferências em que várias personalidades de diferentes áreas são convidadas a falar de literatura.
O escritor V. S. Naipaul, galardoado com o Prémio Nobel da Literatura, é um dos convidados e dará uma conferência no dia 22 de Novembro.
EO.
Lusa/fim
keywords: cultura
O roubo na quinta das vinhas
A ação passa-se numa noite de setembro de 1905, na Quinta das Vinhas, com a presença do proprietário, José Mendes Borba, e do seu filho, José Alves Borba, bem como da sua irmã Adelaide, sua sobrinha (filha desta), Maria Adelaide, de um primo, aspirante a oficial, Manuel Barata, e de uma amiga de Maria Adelaide, Maria Elisa. Também está com e/es o Eng. Augusto Claro, a convite de José Mendes Borba, o dono da Quinta. É o narrador do caso.
Uma noite, pelas 24 horas, depois de uma explosão, foi encontrado arrombado o cofre da casa, de onde tinham desaparecido cem títulos da Dívida Externa Portuguesa, que aliás, dois dias depois, tinham entrado em circulação.Depois das investigações a cargo do agente Lima, este desconfiou do filho do dono da casa, com dificuldades de dinheiro e que aliás tinha já maus precedentes, além de que era amigo de Manuel, passador de moeda falsa. Por outro lado, o roubo devia ser da responsabilidade de alguém da casa. Sabia-se que, a hora do crime, todas as pessoas citadas estavam na casa, já recolhidas aos seus quartos, com a exceção do proprietário e do Eng. Augusto Claro.
O agente Lima estranhava que o Engenheiro tivesse justamente subido ao 1º andar (onde se localizava o cofre) pouco antes da explosão. Convencido de que tudo fora obra de uma quadrilha com inteligências, não só com o filho do dono da casa, mas também com mais alguém, o agente prendeu o jardineiro José Algarvio.
É então que o Engenheiro pede ao Dr. Quaresma que procure resolver o enigma, tanto mais que está convicto da inocência do jardineiro. É por aqui que principia, no texto de Pessoa, a narrativa do Eng. Augusto Claro, em discurso direto.
Observe-se que, em apontamento datilografado, o poeta nos deixou uma síntese do livro, dividida em cinco partes:
l. Indicações sobre as pessoas, os locais, e o caso como se deu até ao princípio da investigação policial .
II. Narrativa das investigações policiais, incluindo o encontro de quatro títulos, o esbarrar das investigações (conduzidas sempre na hipótese de o culpado ser um estranho), até a saída do narrador da Quinta das Vinhas.
III. Narrativa de como o caso realmente se passou, até o narrador ficar aguardando com receio a vinda do princípio do ano.
IV. A segunda investigação policial, a visita ao Dr. Quaresma, até ao braço no ombro do narrador.
V. A explicação do Dr. Quaresma.
Eis os fragmentos da narrativa do Engenheiro, que o autor chegou a escrever:
1º fragmento:
Apesar de me maçar, por antecipação, a idéia de ir contar ao Dr. Quaresma toda a história do roubo, não podia decentemente furtar-me a fazê-lo. Por isso, resignando-me com placidez, lhe expus, resumindo o mais possível, todos os fatos que vão expostos no decurso desta narrativa. Fiz, como e de supor, algumas supressões: não falei nas dividas do José Alves, nem no caso dos quinhentos escudos, e muito menos da parte do discurso do Lima de que estas coisas tinham sido o assunto e a base. Não pude, porem, esquivar-me a falar da hipótese policial, de que havia uma quadrilha a trabalhar, e que a polícia suspeitava que o fizessem em ligação com alguém de dentro da Quinta das Vinhas. Se não explicasse isto, era incompreensível a prisão de José Algarvio; e, aliás, bastava que o Dr. Quaresma se interessasse ativamente por ele para o descobrir na policia.
O Dr. Quaresma ouviu-me com grande atenção; mas, se assim posso dizer, com uma atenção dividida. Parecia, ao mesmo tempo que me ouvia com os olhos, estar escutando uma voz que não era a minha. Reconheço o absurdo deste modo de dizer, mas transcrevo a minha impressão sensorial. Na realidade, o Dr. Quaresma parecia, sem deixar de me ouvir atentamente, estar todavia a seguir o decurso interior de uma outra coisa - raciocínio ou conjectura ligada - que não deixava de ter relação com o que eu ia narrando.
Acabei, por fim, a minha narrativa, e supunha-me livre do fardo dela. Mas o Dr. Quaresma, que não me interrompera enquanto eu contava, começou nesta altura a inter- rogar-me. Pediu-me uma descrição minuciosa das pessoas que estavam na casa por ocasião do roubo; a minha descrição direta havia sido sumária. Interrogou-me sobre idades, profissões, estados financeiros, e tudo mais. Comecei a sentir-me menos à vontade, sobretudo quando o José Alves era o assunto do interrogatório. Eu não podia dizer toda a verdade sobre o José Alves, mas também, em simples justiça ao preso, não podia suprimir redondamente os fatos. Além disso, não estava muito seguro que o Dr. Quaresma, falando depois à polícia, não iria descobrir os fundamentos da outra hipótese do agente Lima. Decidi narrar o caso de certas atrapalhações financeiras do José Alves, não explicando o jogo que ele motivara, nem fazendo referência ao furto anterior.
A certa altura, porém, comecei a atrapalhar-me, pois o medico entrou no assunto por desvios. Perguntou-me se as relações entre pai e filho tinham sido sempre boas, ao que eu respondi que me parecia que sim, mas o próprio verbo "parecer" me soou cauteloso demais, e receei que levasse ao Dr. Quaresma mais informação do que eu queria dar. Com essas e outras perguntas me entreteve, sem me divertir, durante cerca de uma hora e meia, a contar do início da minha conversa.
Há aqui uma lacuna, a do pedido do Engenheiro ao Dr. Quaresma, para que salve o jardineiro, a seu ver injustamente preso. A narrativa prossegue:
2º fragmento:
- Só o posso fazer pondo a mão no verdadeiro criminoso.
- Então faça-o, Sr. Dr. Quaresma.
Quaresma desdobrou as mãos, estendeu a destra e tocou-me no ombro. Por fim, levantou-se da cadeira, e dirigiu-se para um cabide onde tinha o chapéu.
- Não se importa que saíssemos? - perguntou. - Queria passear um pouco para acabar uns certos raciocínios.
- Não me importo nada. - E saímos.
Descemos a Rua dos Fanqueiros. Estava uma tarde linda de Outono. Seguimos lado a lado, silenciosos ambos, e, no fim da rua, seguindo o movimento do Dr. Quaresma, viramos à direita, para o Terreiro do Paço. O Dr. Quaresma avançou lentamente, cabisbaixo, as mãos sempre cruzadas atrás das costas, até à muralha da esquerda. Ali parou, e eu com ele, e contemplou vagamente o rio. Esteve assim um momento. Depois voltou-se para mim com uma expressão grave e direta nos olhos naturalmente um pouco febris.
- Eu salvo o José Algarvio - disse. - Mas, antes de o fazer, preciso estudar com muito cuidado como hei de proceder no assunto. Calhou muito bem que fosse o Sr. Claro que me procurasse, porque é consigo que eu tenho estudar a sério a resolução do assunto. Diga-me uma coisa: ocorreu-lhe alguma vez que o José Alves pudesse ser suspeito?
- Se me ocorreu? Não. Como sabe o Sr. Dr. Quaresma que ele é, ou pode ser suspeito?
Depreende-se que assim é. O diálogo continua:
- Se eu salvar este José Algarvio, o José Alves será fatalmente preso.
- Talvez não - disse eu.
- É-o com certeza. Será preso e será condenado. Este José Algarvio salva-se com facilidade, nem era preciso o meu auxilio para nada. O José Alves é que se não salva. É pena. Quer dizer, não se salva, se o caso seguir o seu curso entregue só à policia. Há só um processo de o salvar: é pôr a mão no criminoso. Ora a polícia não é capaz de o fazer, porque caiu, desde o princípio, num erro fundamental, naquele mesmo erro em que o criminoso quis que ele caísse.
- E o Sr. Dr. Quaresma sabe quem é criminoso?
- Sei. Quer que eu salve o José Alves?
- Quero - disse eu hesitantemente, sem perceber o que se seguiria.
No fragmento seguinte, também encontrado no espólio, quem fala agora é o Dr. Abílio Quaresma, médico e decifrador, expondo os raciocínios que o levaram à conclusão lógica do problema.
4º fragmento:
O critério de investigação que adoto, porque o acho o mais racional de todos, é o dividir a investigação preliminar em três tempos. O primeiro tempo é determinar quais são os fatos incontestáveis, absolutamente incontestáveis, eliminando todos os elementos que não o sejam, ou porque não ha certeza direta deles, ou porque sejam conclusões - talvez lógicas, talvez inevitáveis - tiradas desses fatos, mas, em todo o caso conclusões e não fatos. Citarei um exemplo para esclarecer inteiramente o que desejo significar com estas observações. Suponha que está um dia de chuva e que estou em casa. Aparece-me um indivíduo com o fato a escorrer em água. É natural que eu pense: "Este homem andou à chuva e assim ficou molhado." Mas pode bem ser que não andasse à chuva, que entornassem água sobre ele aqui dentro de casa. A maioria da gente consideraria um fato o ter andado esse homem à chuva. Afinal é uma conclusão - uma conclusão naturalíssima, mas uma conclusão, ou uma dedução. Se eu tivesse estado à janela, tivesse visto esse indivíduo vir pela rua fora sob uma chuva pesada, poderia ainda, é certo, esse molhar da chuva ser suplementado por outra circunstância qualquer, mas alguma coisa da chuva teria molhado o homem, e eu poderia, em todo o caso, afirmar que o homem tinha andado à chuva. E então isso seria um fato.
Ora, neste caso do roubo na Quinta das Vinhas, há alguns fatos que parecem incontestáveis (digo "parecem", pois eles se baseiam em testemunhos que podem ser falsos, involuntária ou propositadamente). Esses fatos são: que cerca da meia-noite do dia ... de Setembro se deu uma explosão de dinamite na fechadura do cofre no escritório da Quinta das Vinhas; que esse escritório e a saleta anexa estavam fechados por dentro, aberta a janela da saleta, e dois cães mortos por envenenamento; que se verificou nessa altura não estarem no cofre dinamitado uns títulos (cem) da Divida Externa Portuguesa, 1ª série, que haviam estado nesse cofre; que se não encontrou sinal de ninguém suspeito na busca que se passou imediatamente nas proximidades da casa; que todos os títulos roubados, verificados os seus números por uma lista que existia em poder do proprietário dos títulos, foram passados para a circulação bancária da praça sem que qualquer deles fosse apanhado no processo de passagem. Fatos, simplesmente fatos, há só estes. Quanto mais se queira passar por fato é simplesmente dedução.
Estabelecidos os fatos incontestáveis, chegamos ao segundo tempo da investigação. Este tempo consiste no seguinte: em descobrir qual e a hipótese que mais completamente liga e explica os fatos incontestáveis. Mas, descoberta esta hipótese, há que investigar que outras hipóteses haverá que também, embora com menos probabilidade aparente, se ajustem ao conjunto dos mesmos fatos. E essas hipóteses determinam-se por um processo simples: descoberta a hipótese mais provável, estabelece-se Jogo a hipótese contrária e verifica-se qual o grau de probabilidade que a essa hipótese contrária compete. Estabelecido isto, será possível partir para as outras hipóteses, isto é, aquelas que estejam intermédias, entre a mais provável e a sua contrária, e ir verificando, a uma e uma, quais as probabilidades delas.
No caso de que se estamos tratando, a hipótese aparentemente mais provável é a que toda a gente aceitou desde logo, instintivamente, achando-a tão provável que a tomou, até, por fato e não por hipótese ou conclusão. Essa hipótese é de que o roubo houvesse sido praticado por um indivíduo ou indivíduos, estranhos à Quinta das Vinhas, que houvessem envenenado os cães, entrando em casa escondidos, posto a dinamite, roubado os títulos e fugindo depois, suficientemente depressa para não serem vistos. Conhecida esta hipótese, estabeleceremos a hipótese contrária. A hipótese contrária é que o roubo não tenha sido praticado por indivíduos estranhos, que não tenha havido nenhuma das circunstâncias aparentes já indicadas. É isso que constitui, como é de ver, a hipótese contrária.
Ora que probabilidade se pode ligar a esta hipótese contrária? Como a hipótese mais provável, a mais imediata para todos, é que o roubo fosse feito por estranhos, e nas circunstâncias indicadas, a hipótese contrária será realmente provável apenas num caso: se houve a intenção de simular esse roubo por estranhos. Nesse caso, a hipótese contrária é provável; tão provável como a primitiva é natural.
Estamos, pois, perante duas hipóteses prováveis, e que entre si se opõem. Qual das duas é a mais provável? Temos que considerar isto à luz do exame das circunstâncias diretas do roubo, ou seja, considerando (1ª) o local do roubo, (2ª) a hora em que o roubo foi praticado, (3ª) a natureza do objeto roubado. São estes os três elementos materiais diretos do sucesso.
O local do roubo pode ser considerado sob dois aspectos - o local em si mesmo, e a escolha deste local para roubo; ou seja, o ser o roubo praticado no escritório da Quinta das Vinhas, e o ser a Quinta das Vinhas o local escolhido para o roubo. Quanto a dar-se o roubo no escritório da Quinta, nada há de extraordinário pois ali é que está o cofre, e o roubo havia forçosamente de ser ali. Mas quanto a escolher a Quinta das Vinhas para casa a roubar, o caso é diferente. Que presunção havia de que o cofre da Quinta das Vinhas era mais proveitoso de roubar que qualquer outro cofre? Que presunção dessa ordem havia para estranhos? Quem tivesse a habilidade e os processos para roubar como se roubou neste caso, por que escolheria a Quinta das Vinhas, quando, sem desperdício de habilidade, nem maior risco, obteria melhores vantagens atacando outro ponto? A probabilidade neste caso é, pois, em favor de uma pessoa não estranha à casa; capaz de roubar esse cofre por não ter outro a mão - razão suficiente e clara - e sentindo-se na necessidade de simular o roubo dum estranho para desviar a atenção de alguém de dentro da casa, entre os quais ele estaria incluído.
Agora quanto à hora do roubo. Quanto à hora do roubo, é mais estranha se ele foi obra de estranhos do que se foi obra de alguém de dentro de casa. Entrado em casa, o gatuno estranho deixa passar o tempo necessário para ter a certeza, ou a probabilidade grande de estarem todos a dormir. Para que operar logo, ainda que não se soubesse que tinha ficado alguém cá em baixo? Para estranhos é a hora mais espantosa que se pode imaginar. Mas para alguém de dentro da casa, que quisesse simular um roubo por estranhos, a hora e exatamente a que seria escolhida. Estava quase toda a gente deitada, mas ainda estava alguém a pé. Não havia tanta gente a pé que se corresse o risco de cruzar com alguém ao dispor as coisas para a simulação; mas havia ate o número bastante de pessoas para marcar a hora - neste caso a pretensa hora - do roubo e para dar sinal de que o roubo estava cometido.
A natureza do objeto roubado... Se o roubo foi praticado por estranhos, ou iam roubar os títulos ou não iam roubar senão o que encontrassem. Contra a hipótese de que iam ao acaso, milita a própria natureza do roubo, e a maneira como depois foi passada a matéria roubada parece indicar preparação para dispor dela.
Em toda a investigação de um fato, cuja natureza se desconhece e se quer saber ou cujo autor se ignora e se quer descobrir, o que importa, acima e antes de tudo, é isolar nele qualquer elemento que, sendo absolutamente indubitável, seja, ao mesmo tempo, inesperado ou estranho. Este roubo contém dois elementos que são inesperados ou estranhos - as circunstâncias do roubo, e o fato de que se conseguiu passar os títulos sem encontrar obstáculos. Por um destes dois fatos, portanto, convém que principiemos a investigação.
Mas, isolados que sejam os fatos de que se não possa duvidar que se deram, e que são estranhos (presumindo, é claro, que haja mais do que um), escolheremos, para verdadeiro princípio da investigação, aquele desses fatos que seja susceptível de menos interpretações, isto é, aquele que pareça mais misterioso. Ora a passagem dos títulos é susceptível de várias interpretações; pode haver um conluio com qualquer indivíduo num banco ou na bolsa; pode haver um erro qualquer na lista dos títulos; pode ter havido uma troca de títulos sem que se verificasse a troca, nem portanto se conferissem os números. Mas sobre as circunstâncias do próprio roubo não há várias hipóteses plausíveis. Há simples estranheza.
Sim. O roubo foi praticado, ao que se viu, por um processo ruidoso, e a hora não tão cedo que fosse dia, mas não tão tarde que houvesse a certeza de estarem todos deitados em casa, como efetivamente não estavam. Podendo o cofre ser aberto por vários processos que não envolviam ruído, foi escolhido um processo que precisamente o causava; e, ainda, um processo invulgar. Resultado: foi escolhido um processo invulgar porque era desnecessário e produzia alarme - exatamente as razões contrárias àquelas que levariam a escolher um processo invulgar. Que a intenção era roubar os títulos é evidente, primeiro porque o modo misterioso como se passaram os títulos deve, qualquer que fosse, ter sido objeto de preparação; segundo, porque, sendo o roubo praticado com gente dentro de casa, não haveria tempo para roubar mais que os títulos.
Ora estas circunstâncias levam-nos a uma conclusão: que o processo empregado para o roubo foi empregado precisamente para dar alarme. Ora não se dá alarme senão para um fim: para enganar sobre a hora do roubo. E, se considerarmos que o processo de roubo - uma deflagração por rastilho - é coisa que pode ser disposta por uma pessoa para produzir resultado quando essa pessoa não esteja presente, chegamos a outra e ulterior conclusão: que o roubo não foi praticado pela deflagração de dinamite. Se o não foi, é porque foi por chave falsa e se foi por chave falsa, quem roubou era uma pessoa da casa, que, pela deflagração, quis dar a idéia de que quem roubara era pessoa de fora. Mas, se essa pessoa queria dar a idéia de que o que roubava não era ele, haveria de completar o seu cenário com o cuidado de estar onde o vissem na ocasião da deflagração e assim assegurar a si mesmo um álibi suficiente. Na altura da deflagração estavam todos deitados menos duas pessoas - o pai Borba e V. Ex.ª. E, como era ele o proprietário dos títulos, a primeira suspeita é sobre V. Ex.ª que recai.
Para que a suspeita se confirme, ou se confirme mais, é preciso ver, primeiro, se, um pouco antes de se dar a deflagração, V. Ex.' saiu de casa de jantar sob um pretexto qualquer e se demorou bastante para dispor o cenário. Ora V. Ex.' saiu sob um pretexto direto - o ter deixado uma cigarreira no quarto do aspirante -, e demorou-se o bastante para dispor o cenário completo, aliás obra de minutos sobretudo para quem, tendo tudo estudado, procede rapidamente.
Agora é o Eng. Augusto Claro, apontado por Quaresma como autor do roubo, que volta a ser o narrador.
5º fragmento:
O Dr. Quaresma desligou as mãos detrás das costas, olhou sem expressão e rapidamente para mim, e, estendendo a mão direita de repente, tocou-me no ombro. Depois tornou a posição em que estava, as mãos outra vez atrás das costas, atadas, e os olhos perdidos sobre o Tejo.
Como uma bola de sabão, estoirou-me a alma, sem ruído, dentro de mim. Fiquei suspenso de um vácuo interior, sem razão, sem fala, sem gesto. Se o Dr. Quaresma tivesse dito qualquer coisa, eu teria respondido qualquer coisa; teria tido a que adaptar a minha razão e a minha voz. Ao silêncio não pude responder nada. O seu gesto era guilhotinante. No longo espaço de curtos segundos tentei desesperadamente formar uma atitude, uma palavra, um gesto, qualquer coisa... Não pude... e então compreendi violentamente quanto pode em nos, se sabem excita-la, a consciência da culpabilidade. Fosse eu inocente, e alguma coisa diria, alguma coisa sucederia. Com cada fração de segundo do meu silêncio a minha culpabilidade enchia o espaço. Com cada fração da minha consciência desse silêncio aumentava a minha incapacidade de falar, de agir, de me defender. A minha der-rota era completa. No fim do que deviam ser poucos segundos reconheci-o inteiramente.
O Dr. Quaresma desviou o olhar do Tejo, mas não o passou por mim. Voltou-se de costas para o rio, disse-me, com um tom de quem antes nada dissera que pesasse: "E se nós nos fôssemos embora?" E, avançando ele para o Arco da Rua Augusta, avancei, silencioso ao lado dele, soterrado em mim sob a acusação definitiva que não fora proferida.
A meio da Praça o Dr. Quaresma voltou para mim a face, mas não os olhos, e disse: "O que pensa fazer?"
Tive uma grande vontade de chorar, de lhe pedir perdão, a ele, a quem nada fizera. Durante um momento não pude falar. Depois encontrei a minha voz dizendo-lhe: "Não sei." E acrescentei, passado um momento: "O doutor dirá o que quiser."
O Dr. Quaresma olhou então em cheio para mim, e disse-me com grande simplicidade: "Eu não tenho nada a dizer. Como já compreendeu, decifrei - posso dizer-lhe que decifrei com muita facilidade - o seu caso. O resto é consigo."
FERNANDO PESSOA: Nascido em Lisboa, no dia 13 de junho de 1888, perde o pai aos 5 anos de idade. Em 1896, a família é levada pelo segundo marido de sua mãe para a África do Sul. Em 1903, ingressa na Universidade do Cabo. Deixa a família na África e retorna para Portugal, onde se matricula no Curso Superior de Letras, que logo abandona. Em 1908, começa a trabalhar como tradutor de cartas comerciais para empresas estrangeiras, esse modesto emprego lhe garantiria o sustento por toda a vida. Funda em 1915, juntamente com amigos, a revista Orpheu, marco inicial do Modernismo Português. Mergulha em anos de relativa obscuridade, publica dois pequenos volumes de poemas em inglês, reunindo Antinuous e 35 Sonnets (1918), além de ensaios e poemas esporádicos em algumas revistas. Em 1934, tomando dinheiro emprestado, publica o livro Mensagem, com o qual participa do prêmio Antero de Quental. Recebe o prêmio de Categoria B. No dia 30 de novembro de 1935, morre de cirrose hepática, sem nunca ter recebido o merecido reconhecimento. Escreveu, no dia de sua morte, a seguinte frase em inglês: " I know not what tomorrow will bring " ( " Eu não sei o que o amanhã trará").
Orpheu
Orpheu, nome mitológico onde radica o termo orfismo, era no panorama nacional, uma revista trimestral de literatura, destinada a Portugal e ao Brasil e de que veio a lume o primeiro número, em 1915, correspondente a Janeiro, Fevereiro e Março. As 83 páginas da revista, impressa em excelente papel e tipo elegante, abriam por uma «introdução» de Luís de Montalvor, em que se pretendia definir os intuitos da obra a que meteu ombros um grupo de jovens que com frequência se reuniam em alguns cafés da baixa lisboeta.
Segundo Montalvor, Orfeu «é um exílio de temperamentos de arte que a querem como a um segredo ou tormento» e a pretensão dos seus fundadores «é formar, em grupo ou ideia, um número escolhido de revelações em pensamento ou arte, que sobre este princípio aristocrático tenham em Orfeu o seu ideal esotérico e bem nosso de nos sentirmos e conhecermos».
Quando a guerra de 1914-18 começou, reuniram-se os factores de um movimento estético pós-simbolista em Lisboa. Aí se conheceram, entre outros, Fernando Pessoa, cuja adolescência se formara na África do Sul, dentro da cultura inglesa; Mário de Sá Carneiro, que entre 1913-16 passou grande parte do tempo em Paris; Almada Negreiros e Santa Rita Pintor, que traziam de Paris as novidades literárias e sobretudo plásticas do futurismo e correntes afins. A estas personalidades do grupo atribuiu a opinião pública sinais de degenerescência, mas hoje é fácil reconhecer que as suas atitudes correspondiam a um sentimento geral de crise latente. Particularidades de formação e temperamento, relacionáveis com a instabilidade social, alhearam os artistas, tanto da ideologia republicana como das reacções críticas que ela despertara.
Mário de Sá Carneiro pertence à geração do Orpheu, a revista que, idealizada no Brasil por Luís de Montalvor e Ronald de Carvalho, pretendia comunicar a nova mensagem europeia, preocupada apenas com a beleza exprimível pela poesia, inspirada no simbolismo de Verlaine, Mallarmé e Camilo Pessanha, no futurismo de Marinetti, Picasso e Walt Whitman, no super-realismo de André Breton. Preconizava a arte pela arte mas ao mesmo tempo a descida a busca ansiosa do «eu» e a fixação da agitada idade moderna.
Em 1914 os jovens modernistas, encetaram seu o projecto que Luís da Silva Ramos (Luís de Montalvor) acabava de trazer do Brasil: o lançamento de uma revista luso-brasileira Orpheu. Dessa revista saíram efectivamente dois números (os únicos publicados) em 1915; incluíam colaboração de Montalvor, Pessoa, Sá Carneiro, Almada, Cortes Rodrigues, Alfredo Pedro Guisado e Raul Leal; dos brasileiros Ronald de Carvalho (que, regressado do Brasil, serviria de traço de união entre o Modernismo brasileiro e português) e Eduardo Guimarães; de Ângelo de Lima, internado no manicómio; de Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa. A revista vinha realizar uma aspiração comum dos jovens poetas que se reuniam à volta de Fernando Pessoa no Irmãos Unidos. No Orpheu poderiam publicar as suas peças de escândalo: poesias sem metro, celebrando roldanas e polias, ou revelando as profundezas do subconsciente, sem passar pelo crivo da razão. O primeiro número, saído em Abril de 1915, esgotou-se em três semanas, por uma espécie de sucesso negativo: comparavam-no para se horrorizarem com o seu conteúdo e se encolerizarem com os seus colaboradores. Um destes, Armando Cortes Rodrigues, conta que eram apontados a dedo nas ruas, olhados com ironia e julgados loucos, para quem se reclamava, com urgência, o hospício de Rilhafoles.
Um segundo número sairia em Julho do mesmo ano, com conteúdos bem mais futuristas; um terceiro número foi organizado e mesmo impresso parcialmente, mas não se publicou. Era mais uma revista literária que morria à míngua de recursos. Não bastara o talento e o arrojo dos seus colaboradores para prolongar-lhe a vida; eram os financiamentos de Sá Carneiro (ou antes, de seu pai, que lhos mandava para Paris) que a sustentavam. Uma reviravolta nos negócios, a cessação da mesada, e fica no nascedouro o que viria a ser o Orpheu 3.
Fernando Pessoa, o Mago
Fernando Pessoa é místico por natureza. Também por palavras, por astros e por heterônimos que lhe desdobram em mil e expressam vidas exclusivas, exatamente como lâminas de um baralho. Atuam e interferem umas nas outras oferecendo destinos, orientações e outros símbolos. Mais e mais símbolos, cada vez mais.
Geminiano, dedicou-se ao estudo da filosofia clássica e contemporânea, sofrendo influências de Baudelaire e do movimento simbolista assim que começou a escrever. Seus estudos de ocultismo englobam toda a sua obra. Caminho mágico, caminho alquímico. Transmutações da própria personalidade. Como astrólogo, introduziu Plutão às cartas. Daí o caráter revolucionário, influência direta do planeta – desbravador de novos mares, tanto os literários e lingüísticos quanto os esotéricos e pessoais. Ou melhor, "pessoanos".
Modernista, investe palavras na Orpheu, uma publicação pra lá de curiosa para quem tem os olhos atentos de cartomante. Na ilustração de capa da primeira edição, assinada por José Pacheco, vê-se uma mulher entre duas velas, como se fossem pilares – nítida associação com a Sacerdotisa do tarô, a Senhora dos Mistérios que, em “O Último Sortilégio” da obra ortônima “Cancioneiro”, marca presença nos versos de uma iniciada. Eles descrevem práticas de magia ritualística, um assunto que Pessoa dominava muito bem.
Aliás, a amizade com Aleister Crowley não pode deixar de ser mencionada. Entre mapas, nevoeiros e auroras douradas, o encontro em Lisboa foi bem mais que obscuro. Fico aqui pensando que "Psiquetipia" foi escrito logo depois de ter conhecido e analisado não só os dados astrológicos mas também os modos e os arcanos nas mãos do mago, mesmo que assinado pela pena de Álvaro de Campos. Pense nas próprias lâminas e leia o trecho.
“Conversa perfeitamente natural... Mas e os símbolos?
Não tiro os olhos de tuas mãos... Quem são elas?
Meu deus. Os símbolos... Os símbolos...”
Pois é, sempre me questionei: “qual teria sido o contato de Pessoa com o tarô? Como, aliás, perceber os arcanos em uma obra tão vasta, tão interrogativa e enigmática?” Bem, a resposta estava na própria pergunta. O tarô é um enigma se pensarmos em sua trajetória histórica, esotérica, simbólica. O poder das imagens que se tornam palavras. Palavras que traduzem imagens. Próprias. Íntimas. Secretas.
Então, se penso nos símbolos, sigo as pistas. Afinal, “tudo são símbolos”. Reparo, então, na famosa anotação que antecede o livro "Mensagem", escrita especificamente para decifrar o conteúdo da obra, recheada de sinais divinos e patriotas. Na verdade, este documento parece ter sido escrito especificamente para os profissionais e estudantes dos arcanos. Longe, então, das intenções sebastianistas e nacionalistas que o autor propôs ao seu estudo, a nota se torna um exercício de interpretação ou mesmo um manifesto que contribui à codificação das cartas e à compreensão do caráter essencialmente polissêmico de seus símbolos. Um documento valiosíssimo que merece atenção, pois infalivelmente contribui para a jornada individual do estudante.
“O entendimento dos símbolos e dos rituais (simbólicos) exige do intérprete – o tarólogo – que possua cinco qualidades ou condições, sem as quais serão, para ele, mortos, e ele um morto para eles. A primeira é a simpatia, em grau de simplicidade e conformidade com as citações. Tem o intérprete que sentir simpatia pelo símbolo que se propõe interpretar. Nesse quesito se enquadra a escolha adequada do baralho, a plenitude e sinceridade do desejo de optar pelas imagens a que se propõe a analisar. A atitude cauta, a irônica, a deslocada – todas elas privam o intérprete da primeira condição para poder interpretar. Cabe aqui a postura de respeito e fidelidade aos arcanos e à prática oracular. Somente pela verdadeira vontade e por constantes e sérios estudos é que as imagens passam a fluir na alma e no cotidiano do indivíduo disposto.
A segunda é a intuição. A simpatia pode auxiliá-la, se ela já existe, porém não criá-la. A dedicação autêntica e continuada das análises promove insights, aberturas mentais e emocionais a outros níveis de interpretação e de capacidade narrativa, mas não nasce repentinamente; quando plantada, exige cultivo e cada arcano espalhado sobre a superfície de leitura. Por intuição se entende aquela espécie de entendimento em que s sente o que está além do símbolo, sem que se veja. Noções diversas sobre diversas situações, explicações e captações lingüísticas por meio da arte – eis a finalidade desta condição. Há de se tomar cuidado com projeções que se jogam ao olho mental, iludindo os menos e os muito preparados.
A terceira é a inteligência. A inteligência analista decompõe, ordena, constrói noutro nível o símbolo; tem, porém, que fazê-lo depois que se usou da simpatia e da intuição. Essa é a premissa básica para estabelecer associações entre as cartas e a cultura, a realidade palpável, às paisagens, aos fatos históricos e até aos imaginários. A inteligência arcana se traduz em criatividade lúdica, representativa e inovadora de quaisquer elementos que se queira abordar simbolicamente. Um dos fins da inteligência, no exame dos símbolos, é o de relacionar no alto o que está de acordo com a relação que está embaixo – o próprio ofício d´O Mago. Não poderá fazer isto se a simpatia não tiver lembrado essa relação, se a intuição a não estiver estabelecido. Então a inteligência, de discursiva que naturalmente é, se tornará analógica, e o símbolo poderá ser interpretado. Eis então o próprio ofício do leitor, que deve aproximar, com estilo, a vida estática das estampas às horas da vida material, sentimental e espiritual para extrair lições e orientações quando solicitadas.
A quarta é a compreensão, entendendo por esta palavra o conhecimento de outras matérias, que permitam que o símbolo seja iluminado por várias luzes, relacionado com vários outros símbolos, pois que, no fundo, é tudo o mesmo. O poder da analogia e da convergência entre disciplinas, conceitos e sistemas diferentes. Alude ao estudo interdisciplinar ao qual o tarô é sujeito, já que trabalha a interdependência simbólica e a evolução de significados sem alterar, diretamente, o fenômeno analisado. Não direi a erudição, como poderia ter dito, pois a erudição é uma soma; nem direi cultura, pois a cultura é uma síntese, e a compreensão é uma vida. Compreender o tarô demanda tempo e maturidade. Exige dedicação e uma determinada carga cultural do estudante, que passará a assimilar emoções, desejos e impressões às cartas após a análise descompromissada das mesmas. A compreensão se dá pela ingenuidade visual, ao olhá-las livres de qualquer significado imposto pela experiência alheia. Aliás, seriam elas uma síntese do mundo? Seriam potenciais, tendências da realidade através dos tempos? Ou então a memória do divino universo da alma? São questões precisas que promovem respostas individuais e coletivas. Assim, certos símbolos não podem ser bem entendidos se não houve antes, ou ao mesmo tempo, o entendimento de símbolos diferentes. Daí a importância dos estudos de literatura, filosofia, de religiões e de história da arte e do mundo. Para que os arcanos sejam “inteiros” nas mãos leigas, faz-se necessária a longa jornada de pesquisa – das origens de tais signos e significantes, de suas migrações e transformações ao longo dos séculos e das diferentes concepções artísticas. Esta quarta condição, que acaba sendo rara e verdadeira qualidade, apenas se torna nítida com o passar do tempo, quando desenvolvida e concretizada a intimidade e o gosto por deitar as lâminas. Exige, portanto, coerência e visão global. É a interpretação da vida. A compreensão dos mecanismos que sustentam o espírito do universo – sobretudo o humano.
A quinta é a menos definível. Direi talvez, falando a uns, que é a graça, falando a outros, que é a mão do Superior Incógnito, falando a terceiros, que é o Conhecimento e Conversação do Santo Anjo da Guarda, entendendo cada uma destas coisas, que são a mesma da maneira como as entendem aqueles que delas usam, falando ou escrevendo.” Menos definível porque, como a Beleza, insinua-se para poucos; apenas para as almas despertas. Menos definível pois só é constatada quando se joga e quando se escreve. É a transcendência do tarô. O dom de manipular as palavras – escritas e faladas que nascem da observação das cenas ilustradas em cada peça. Augúrios e presságios que são sussurrados e afloram no tempo certo. Qualidade de quem decodifica seus símbolos mais íntimos e os respeita. Como cartas. Como vidas. Como divindades. Como magia. Como profissão. A própria adivinhação e as revelações que indicam o norte ao consulente. Rotas de orientação que quando contempladas, oferecem conselhos e escolhas. Ferramenta do destino, alegoria da imaginação.
REFERÊNCIAS E RECOMENDAÇÕES
LIVROS
Pessoa, Fernando. Mensagem. Coleção A Obra-Prima de Cada Autor.
Editora Martin Claret, São Paulo, 2007
Pessoa, Fernando. Poesias Ocultistas, 2ª edição.
Editora Aquariana, São Paulo, 1996.
SITES
Artigo de Izabel Margato, disponível na Cátedra/PUC-Rio.
Imagens sem legenda encontradas no deviantArt ou no Google Imagens.
NOTA PRELIMINAR
Apontamento de FP, s.d.; não assinado.
Leonardo Chioda
Dados sobre o poeta
Nome: Fernando António Nogueira Pessoa
Nascimento: 13-6-1888, Lisboa
Morte: 30-11-1935, Lisboa
Poeta, ficcionista, dramaturgo, filósofo, prosador, Fernando Pessoa é, inequivocamente, a mais complexa personalidade literária portuguesa e europeia do século XX. Após a morte do pai, partiu com sete anos para a África do Sul onde o seu padrasto ocupava o cargo de cônsul interino. Durante os dez anos que aí viveu, realizou com distinção os estudos liceais e redigiu alguns dos seus primeiros textos poéticos, atribuídos a pseudónimos, entre os quais se salienta o de Alexander Search. Com dezassete anos, abandona a família e regressa a Portugal, com a intenção de ingressar no Curso Superior de Letras. Em Lisboa, acaba por abandonar os estudos, sobrevive como correspondente comercial de inglês e dedica-se a uma vida literária intensa. Desenvolve colaboração com publicações (algumas delas dirigidas por si) como A República, Teatro, A Águia, A Renascença, Eh Real, O Jornal, A Capital, Exílio, Centauro, Portugal Futurista, Athena, Contemporânea, Revista Portuguesa, Presença, O Imparcial, O Mundo Português, Sudoeste, Momento. Com Mário de Sá-Carneiro e Almada Negreiros, entre outros, leva, em 1915, a cabo o projecto de Orpheu, revista que assinala a afirmação do modernismo português e cujo impacto cultural e literário só pôde cabalmente ser avaliado por gerações posteriores. Tendo publicado em vida, em volume, apenas os seus poemas ingleses e o poema épico Mensagem, a bibliografia que legou à contemporaneidade é de tal forma extensa que o conhecimento da sua obra se encontra em curso, sendo alargado ou aprofundado à medida que vão saindo para o prelo os textos que integram um vastíssimo espólio. Mais do que a dimensão dessa obra, cujos contornos ainda não são completamente conhecidos, profícua em projectos literários, em esboços de planos, em versões de textos, em interpretações e reflexões sobre si mesma, impõe-se, porém, a complexidade filosófica e literária de que se reveste. Dificilmente se pode chegar a sínteses simplistas diante de um autor que, além da obra assinada com o seu próprio nome, criou vários autores aparentemente autónomos e quase com existência real, os heterónimos, de que se destacam - o seu número eleva-se às dezenas - Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Alberto Caeiro, cada um deles portador de uma identidade própria; de uma arte poética distinta; de uma evolução literária pessoal e ainda capazes de comentar as relações literárias e pessoais que estabelecem entre si. A esta poderosa mistificação acresce ainda a obra multifacetada do seu criador, que recobre vários géneros (teatro, poesia lírica e épica, prosa doutrinária e filosófica, teorização literária, narrativa policial, etc.), vários interesses (ocultismo, nacionalismo, misticismo, etc.) e várias correntes literárias (todas por si criadas e teorizadas, como o paulismo, o interseccionismo ou o sensacionismo). Elevando-se aos milhares de milhares as páginas já publicadas sobre a obra de Fernando Pessoa, e, muito particularmente, sobre o fenómeno da heteronímia, uma das premissas a ter em conta quando se aborda o universo pessoano é, como alerta Eduardo Lourenço, não cair no equívoco de "tomar Caeiro, Campos e Reis como fragmentos de uma totalidade que convenientemente interpretados e lidos permitiriam reconstituí-la ou pelo menos entrever o seu perfil global. A verdade é mais simples: os heterónimos são a Totalidade fragmentada [...]. Por isso mesmo e por essência não têm leitura individual, mas igualmente não têm dialéctica senão na luz dessa Totalidade de que não são partes, mas plurais e hierarquizadas maneiras de uma única e decisiva fragmentação. (p. 31) Avaliando a posteriori o significado global dessa aventura literária extraordinária revestem-se de particular relevo, como aspectos subjacentes a essas múltiplas realizações e a essa Totalidade entrevista, entre outros, o sentido de construtividade do poema (ou melhor, dos sistemas poéticos) e a capacidade de despersonalização obtida pela relação de reciprocidade estabelecida entre intelectualização e emoção. Nessa medida, a obra de Fernando Pessoa constitui uma referência incontornável no processo que conduz à afirmação da modernidade, nomeadamente pela subordinação da criação literária a um processo de fingimento que, segundo Fernando Guimarães, "representa o esbatimento da subjectividade que conduzirá à poesia dramática dos heterónimos, à procura da complexidade entendida como emocionalização de uma ideia e intelectualização de uma emoção, à admissão da essencialidade expressiva da arte" bem como à "valorização da própria estrutura das realizações literárias" (cf. O Modernismo Português e a sua Poética, Porto, Lello, 1999, p. 61). Deste modo, a poesia de Fernando Pessoa "Traçou pela sua própria existência o quadro dentro do qual se move a dialéctica mesma da nossa Modernidade", constituindo a matriz de uma filiação textual particularmente nítida à medida que a sua obra, e a dos heterónimos, ia, ao longo da década de 40, sendo descoberta e editada, a tal ponto que, a partir da sua aventura poética, se tornou impossível "escrever poesia como se a sua experiência não tivesse tido lugar." (LOURENÇO, Eduardo, cit. por MARTINHO, Fernando J. B. - Pessoa e a Moderna Poesia Portuguesa - do "Orpheu" a 1960, Lisboa, 1983, p. 157.)
Bibliografia: 35 Sonnets, Lisboa, 1918; English Poems, I, II e III, Lisboa, 1921; Mensagem, Lisboa, 1934; Obras Completas, 11 vols., Ática, 1942-80; Obra Poética (org., intr., e notas de Maria Aliete Galhoz), Rio de Janeiro, 1965; Obras em Prosa (org., intr., e notas de Cleonice Berardinelli), Rio de Janeiro, 1974; Obra Poética e em Prosa, (org. intr. bibli. e not. de António Quadros), 17. vols, Lisboa, 1985-86, 3 vols, Porto, 1986. Edições Críticas da Obra de Fernando Pessoa: Fernando Pessoa-Ricardo Reis: Os Originais, as Edições, o Cânone das Odes (org. e apres. Silva Belkior), 1983; O Manuscrito de O Guardador de Rebanhos (edição fac-similada com texto crítico de Ivo Castro), Lisboa, 1986; Texto Crítico das Odes de F. Pessoa-Ricardo Reis: tradição impressa revista e inéditos (notas e comen. de Silva Belkior), Lisboa, 1988; A Passagem das Horas de Álvaro de Campos (edição crítica de Cleonice Berardinelli), Lisboa, 1988; Edição Crítica de Fernando Pessoa, vol. II, Poemas de Álvaro de Campos (edição crítica de Cleonice Berardinelli), 1990, reed., aum. e corr. 1992; Álvaro de Campos - Livro de Versos (ed. crítica org. e apres. por Teresa Rita Lopes), Lisboa, 1993; Edição Crítica de Fernando Pessoa, volume V, Poemas Ingleses, tomo I (ed. João Dionísio), 1993; Mensagem - Poemas Esotéricos (edição crítica e coord. José Augusto Seabra), Madrid, 1993; Edição Crítica de Fernando Pessoa, vol. III, Poemas de Ricardo Reis (edição crítica por Luis Fagundes Teles), Lisboa, 1994; Poemas Completos de Alberto Caeiro prefácio de Ricardo Reis posfácio de Álvaro de Campos (recolha, transcrição e notas de Teresa Sobral Cunha, posfácio de Luís de Sousa Rebelo), 1994; Edição Crítica de Fernando Pessoa, volume I, Poemas de Fernando Pessoa: Quadras (ed. Luís Prista), Lisboa, 1997; Edição Crítica de Fernando Pessoa, volume V, Poemas Ingleses, tomo II (ed. João Dionísio), 1997; Edição Crítica de Fernando Pessoa, volume V, Poemas Ingleses, tomo III (ed. Marcus Angioni e Fernando Gomes), 1999. Edição Crítica de Fernando Pessoa, volume I, Poemas de Fernando Pessoa, 1934-1935, tomo V, (ed. Luís Prista), Lisboa, 2000.Correspondência: Cartas a Armando Cortes-Rodrigues (intr. e ed. Joel Serrão), Lisboa, 1944, reed. 1960; Cartas a João Gaspar Simões (editadas e prefaciadas pelo destinatário), Lisboa, 1957, reed. 1988; Cartas de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, 2 vols., Lisboa, 1958-59; Cartas de Amor de F. Pessoa, vol. I (org. e pref. Urbano Tavares Rodrigues), Lisboa, 1958; (org., posfác. e notas de D. Mourão-Ferreira, estabelecimento do texto e preâmbulo de Maria da Graça Queirós), 2 vols., Lisboa, Ática, 1978; Correspondência inédita de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa (leitura, intr. e notas de Arnaldo Saraiva), Porto, 1980; Cartas de Amor de Ofélia a Fernando Pessoa (org. de Manuela Nogueira e Maria da Conceição Azevedo), Assírio e Alvim, 1996; Correspondência Inédita, (org. e notas Manuela Parreira da Silva, pref. Teresa Rita Lopes), Lisboa, 1996; Correspondência (1923-1935) (ed. Manuela Parreira da Silva), Lisboa, Assírio e Alvim, 1999; Correspondência (1902-1934) (ed. Manuela Parreira da Silva), Lisboa, 2000
Fernando Pessoa. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2006. [Consult. 2006-11-06].
Disponível na www:
sexta-feira, 13 de junho de 2008
120 anos do nascimento de Fernando Pessoa
sérgio almeida
JN
O poeta que viveu e morreu quase anonimamente converteu-se no maior ícone da língua portuguesa, o único cuja glória não conhece fronteiras. Nos 120 anos do nascimento de Fernando Pessoa, o fervor em torno da sua obra está intacto.
O homem sem biografia - "um cabide onde todas as figuras que criou se suspendem", como o define Mário Cláudio, autor do recente "Boa noite, Senhor Soares", um itinerário novelesco do universo pessoano - tem inspirado, nas últimas décadas, mais criações do que qualquer outro autor português. Um contrasenso? Não necessariamente. "É uma figura neutra, onde tudo cabe. Mas, acima de tudo, Pessoa é muito mais um actor do que um escritor, porque representou vários papéis", defende Mário Cláudio, que diz preferir de longe os heterónimos do autor aos textos publicados em nome próprio. O fascínio provocado por esta figura elíptica, demasiado ausente para encaixar neste Mundo, é bem evidente nas dezenas de aproximações à sua vida e obra feitas por criadores, nacionais e estrangeiros, de áreas como as artes plásticas, literatura, cinema, música e teatro. Os dois quadros pintados a título póstumo pelo seu amigo Almada Negreiros - com o poeta sentado a uma mesa de café a fumar - são a imagem mais recorrente , mas não propriamente a única. Artistas como Vieira da Silva, Mário Botas, Alfredo Margarido, Jorge Martins, Costa Pinheiro e José de Guimarães, entre muitos outros, contribuíram para tornar familiar o rosto de Fernando Pessoa junto de públicos que não são leitores habituais. A reprodução destes estereótipos (com os óculos, chapéu e bigode característicos) teve, porém, um lado menos benéfico, segundo o crítico de arte Rui Mário Gonçalves, ao criar algumas "imagens anedóticas". A (omni)presença pessoana é tal que não se torna fácil encontrar um criador musical português que, a dada altura da sua obra, não se tenha confrontado com o poeta nascido há precisamente 120 anos. Basta citar Fernando Lopes-Graça, Joly Braga Santos, José Afonso, Mariza ou Camané, mas também os mais improváveis Sam the Kid e D-Mars. Com menor prevalência, o teatro não tem escapado à incursão pela obra de Pessoa. Já este ano, o encenador Ricardo Pais concretizou um projecto de longa data, levando à cena "Turismo infinito", primeiro no Teatro São João e depois em digressão nacional, um mosaico formado por algumas das dezenas de personagens que compõem a identidade pessoana. Com tamanha multiplicação de projectos, o habitual discurso adoptado na revisitação de vultos da arte já desaparecidos - o esquecimento - perde todo o sentido. José António Gomes, professor universitário que organizou a antologia "Poesia de Fernando Pessoa para todos", admite que "os justos esforços de divulgação da sua obra deveriam ser extensivos a outros autores igualmente importantes da literatura lusa, como Aquilino, Camilo e, até, Camões". Apesar de o fervor se manter intacto, José António Gomes acredita que "ainda há muito por fazer" juntos dos jovens do primeiro e do segundo ciclos do ensino básico, pelo que se justifica o lançamento de uma antologia que reúne 30 poemas, entre os quais "Poema pial", "Ó sino da minha aldeia" ou "A fada das crianças", e conta com ilustrações de António Modesto, plenas de referências ao cubismo e a outros movimentos do século XX. A certeza de que mais pode ser feito é também defendida pelo investigador Richard Zenith, que, em declarações à Lusa, considerou ser necessário um investimento adicional capaz de revelar "o grande mistério do génio".
Biblioteca e espólio de Pessoa vão estar na Internet
13.06.2008 - 12h35 Luís Miguel Queirós
Dois ambiciosos projectos de divulgação na Internet de materiais pessoanos, ambos envolvendo o investigador Jerónimo Pizarro, irão permitir que especialistas nacionais e estrangeiros tenham acesso online ao espólio de Pessoa, que neste momento ainda se encontra nas mãos dos seus herdeiros, bem como a todas as páginas de todos os volumes da biblioteca que pertenceu ao poeta, incluindo a centena e meia de livros e revistas que os familiares conservaram e que não estão, como os restantes - cerca de 1200 - na Casa Fernando Pessoa.O projecto de digitalização integral da biblioteca de Pessoa conta com o apoio da Câmara de Lisboa e da Casa Fernando Pessoa. Será através do site desta instituição que, no futuro, os interessados irão poder folhear virtualmente os livros do poeta, nos quais este deixou uma abundante "marginalia", incluindo notas de leitura, poemas (alguns ainda inéditos) e uma grande variedade de outros escritos. A equipa de investigadores que trabalha no projecto digitalizou até agora 200 livros; prevê-se que, em breve, possam ser disponibilizadas na Net algumas dezenas de páginas, a título de arranque simbólico da iniciativa. A Câmara de Lisboa já recebeu 50 mil imagens, e há ainda muitos livros por digitalizar. O trabalho sofreu alguns atrasos, porque o software de que a autarquia dispunha não aguentou o volume de informação. Uma das vantagens deste projecto, sublinha Pizarro, é permitir reunir num só lugar, ainda que virtual, os livros da Casa Fernando Pessoa e os que a família do poeta detém, tanto mais que não é ainda claro o destino que poderão vir a ter estes últimos. Por exemplo, o leilão de peças do espólio de Pessoa que a leiloeira Potássio 4 anunciou para Outubro inclui alguns livros. Já nunca será possível reconstituir o que foi exactamente a biblioteca de Pessoa, porque este se desfez de muitos livros durante a sua vida. E mesmo entre aqueles que ainda se encontravam nas mãos da família em 1935, quando o poeta morreu, sabe-se que alguns desapareceram nas últimas décadas, já depois de as pessoanas Maria Aliete Galhoz e Maria da Encarnação Monteiro terem procedido à sua inventariação. A família de Pessoa, que se mostra agora interessada em vender o que lhe resta do espólio, sempre procurou garantir que todas as peças fossem previamente digitalizadas. Vê, portanto, com bons olhos esta iniciativa, e permitiu que uma equipa de investigadores digitalizasse todas as peças, incluindo não apenas os livros, mas também os muitos manuscritos, de diversa natureza, que não se encontravam na famosa arca, cujo conteúdo o Estado arrolou e que acabaria por comprar, em 1979. O grupo de pessoanos envolvido deu prioridade aos livros e revistas que estavam com os herdeiros, dos quais só não digitalizaram ainda, segundo Pizarro, "dois ou três que já foram para a leiloeira". Digitalização de urgênciaFoi justamente o primeiro leilão de materiais do espólio de Pessoa, organizado pela P4 em Dezembro do ano passado, que levou Pizarro a acordar com a família a digitalização, com carácter de urgência, de todos os papéis que esta ainda possuía. Durante uma semana, quatro ou cinco investigadores, cada um com um scanner de alta resolução, estiveram em casa da sobrinha de Pessoa, Manuela Nogueira, a digitalizar furiosamente os documentos que estavam na sua posse e na do seu irmão, Luís Miguel Rosa. "Num dos dias, ficámos até à meia-noite", diz Pizarro. "Quando achávamos que já tínhamos terminado, aparecia sempre mais alguma coisa." Acabaram por digitalizar cerca de 2300 documentos, que incluem o volumoso "dossier Crowley", porventura a peça mais importante já anunciada para o leilão de Outubro. Inicialmente, Pizarro pensou que faria sentido disponibilizar todo este material no site da Biblioteca Nacional (BN), onde está o essencial do espólio. No entanto, como não teve ainda resposta da BN, desenha-se agora a possibilidade de estes papéis virem a ser divulgados através do site do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa, que Pizarro integra.
Dois ambiciosos projectos de divulgação na Internet de materiais pessoanos, ambos envolvendo o investigador Jerónimo Pizarro, irão permitir que especialistas nacionais e estrangeiros tenham acesso online ao espólio de Pessoa, que neste momento ainda se encontra nas mãos dos seus herdeiros, bem como a todas as páginas de todos os volumes da biblioteca que pertenceu ao poeta, incluindo a centena e meia de livros e revistas que os familiares conservaram e que não estão, como os restantes - cerca de 1200 - na Casa Fernando Pessoa.O projecto de digitalização integral da biblioteca de Pessoa conta com o apoio da Câmara de Lisboa e da Casa Fernando Pessoa. Será através do site desta instituição que, no futuro, os interessados irão poder folhear virtualmente os livros do poeta, nos quais este deixou uma abundante "marginalia", incluindo notas de leitura, poemas (alguns ainda inéditos) e uma grande variedade de outros escritos. A equipa de investigadores que trabalha no projecto digitalizou até agora 200 livros; prevê-se que, em breve, possam ser disponibilizadas na Net algumas dezenas de páginas, a título de arranque simbólico da iniciativa. A Câmara de Lisboa já recebeu 50 mil imagens, e há ainda muitos livros por digitalizar. O trabalho sofreu alguns atrasos, porque o software de que a autarquia dispunha não aguentou o volume de informação. Uma das vantagens deste projecto, sublinha Pizarro, é permitir reunir num só lugar, ainda que virtual, os livros da Casa Fernando Pessoa e os que a família do poeta detém, tanto mais que não é ainda claro o destino que poderão vir a ter estes últimos. Por exemplo, o leilão de peças do espólio de Pessoa que a leiloeira Potássio 4 anunciou para Outubro inclui alguns livros. Já nunca será possível reconstituir o que foi exactamente a biblioteca de Pessoa, porque este se desfez de muitos livros durante a sua vida. E mesmo entre aqueles que ainda se encontravam nas mãos da família em 1935, quando o poeta morreu, sabe-se que alguns desapareceram nas últimas décadas, já depois de as pessoanas Maria Aliete Galhoz e Maria da Encarnação Monteiro terem procedido à sua inventariação. A família de Pessoa, que se mostra agora interessada em vender o que lhe resta do espólio, sempre procurou garantir que todas as peças fossem previamente digitalizadas. Vê, portanto, com bons olhos esta iniciativa, e permitiu que uma equipa de investigadores digitalizasse todas as peças, incluindo não apenas os livros, mas também os muitos manuscritos, de diversa natureza, que não se encontravam na famosa arca, cujo conteúdo o Estado arrolou e que acabaria por comprar, em 1979. O grupo de pessoanos envolvido deu prioridade aos livros e revistas que estavam com os herdeiros, dos quais só não digitalizaram ainda, segundo Pizarro, "dois ou três que já foram para a leiloeira". Digitalização de urgênciaFoi justamente o primeiro leilão de materiais do espólio de Pessoa, organizado pela P4 em Dezembro do ano passado, que levou Pizarro a acordar com a família a digitalização, com carácter de urgência, de todos os papéis que esta ainda possuía. Durante uma semana, quatro ou cinco investigadores, cada um com um scanner de alta resolução, estiveram em casa da sobrinha de Pessoa, Manuela Nogueira, a digitalizar furiosamente os documentos que estavam na sua posse e na do seu irmão, Luís Miguel Rosa. "Num dos dias, ficámos até à meia-noite", diz Pizarro. "Quando achávamos que já tínhamos terminado, aparecia sempre mais alguma coisa." Acabaram por digitalizar cerca de 2300 documentos, que incluem o volumoso "dossier Crowley", porventura a peça mais importante já anunciada para o leilão de Outubro. Inicialmente, Pizarro pensou que faria sentido disponibilizar todo este material no site da Biblioteca Nacional (BN), onde está o essencial do espólio. No entanto, como não teve ainda resposta da BN, desenha-se agora a possibilidade de estes papéis virem a ser divulgados através do site do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa, que Pizarro integra.
«Sou fácil de definir»
«Se depois de eu morrer,
quiserem escrever a minha biografia,
Não há nada mais simples.
Tem só duas datas - a da minha nascença e a da minha morte.
Entre uma e outra todos os dias são meus.»
Há 120 anos atrás nascia em Lisboa, Fernando António Nogueira Pessoa. Considerado por muitos como um dos maiores poetas da língua portuguesa, ao lado do épico Camões, viveu a maior parte da sua juventude em África do Sul e por isso o seu rico espólio conta também com alguns poemas em inglês.
Documentos na Internet
Para assinalar o aniversário de Pessoa existem inúmeras iniciativas mas a que perpetuará o nome do poeta é a levada a cabo por Jerónimo Pizarro, investigador do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa, e consiste na digitalização de todo o espólio pessoano para ser colocado, mais tarde, à disposição de todos os cibernautas.
Desta forma, Pizarro pretende preservar as obras de Pessoa. O projecto apoiado pela Casa Fernando Pessoa e pela Câmara Municipal de Lisboa já conta com 200 livros digitalizados, refere o Público.
Mas, a cultura contemporânea também não esquece Fernando Pessoa e para marcar o dia a Câmara Municipal de Lisboa e a Casa Fernando Pessoa promovem um concerto de hip hop ligado à obra do poeta.
O poeta das muitas caras
Multifacetado, considerava-se «fácil de definir», Pessoa teve participações no jornalismo, na publicidade, no comércio e principalmente na literatura onde se multiplicou em muitas outras personalidades, os heterónimos, Ricardo Reis, Álvaro de Campo e Alberto Caeiro.
Morreu aos 47 anos, na sua certidão de óbito refere «bloqueio intestinal» como causa da morte mas são muitos os que asseguram que terem sido os problemas hepáticos.
A sua última frase foi escrita em inglês e foi tão profunda como a sua liberdade poética «I Know not what tomorrow will bring», «Eu não sei o que o amanhã trará».
Pessoa, o poeta fingidor
Em 1986, Ivo Castro organizou uma edição crítica do conjunto de poemas que constituíam o Guardador de Rebanhos, de Alberto Caeiro, que fê-la acompanhar de uma reprodução fac-similada do respectivo manuscrito.
Mas, no momento em que o Estado comprou o espólio de Fernando Pessoa o manuscrito que deveria estar no baú desapareceu e só mais tarde é que se veio a saber que estava nas mãos de um primo do poeta, Eduardo Freitas da Costa.
«O poeta é um fingidor. Finge tão completamente Que chega fingir que é dor A dor que deveras sente.»
No documento «desaparecido» encontravam-se fortes provas de que o célebre «dia triunfal» de 8 de Março de 1914, em que Fernando Pessoa terá escrito «trinta e tal poemas a fio», é no fundo a constatação de uma das maiores características do poeta, o facto de saber fingir.
Caeiro não escreveu todos os poemas seguidos como contou numa carta a Casais Monteiro, terá sido tudo uma premeditada encenação de Pessoa
Documentos na Internet
Para assinalar o aniversário de Pessoa existem inúmeras iniciativas mas a que perpetuará o nome do poeta é a levada a cabo por Jerónimo Pizarro, investigador do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa, e consiste na digitalização de todo o espólio pessoano para ser colocado, mais tarde, à disposição de todos os cibernautas.
Desta forma, Pizarro pretende preservar as obras de Pessoa. O projecto apoiado pela Casa Fernando Pessoa e pela Câmara Municipal de Lisboa já conta com 200 livros digitalizados, refere o Público.
Mas, a cultura contemporânea também não esquece Fernando Pessoa e para marcar o dia a Câmara Municipal de Lisboa e a Casa Fernando Pessoa promovem um concerto de hip hop ligado à obra do poeta.
O poeta das muitas caras
Multifacetado, considerava-se «fácil de definir», Pessoa teve participações no jornalismo, na publicidade, no comércio e principalmente na literatura onde se multiplicou em muitas outras personalidades, os heterónimos, Ricardo Reis, Álvaro de Campo e Alberto Caeiro.
Morreu aos 47 anos, na sua certidão de óbito refere «bloqueio intestinal» como causa da morte mas são muitos os que asseguram que terem sido os problemas hepáticos.
A sua última frase foi escrita em inglês e foi tão profunda como a sua liberdade poética «I Know not what tomorrow will bring», «Eu não sei o que o amanhã trará».
Pessoa, o poeta fingidor
Em 1986, Ivo Castro organizou uma edição crítica do conjunto de poemas que constituíam o Guardador de Rebanhos, de Alberto Caeiro, que fê-la acompanhar de uma reprodução fac-similada do respectivo manuscrito.
Mas, no momento em que o Estado comprou o espólio de Fernando Pessoa o manuscrito que deveria estar no baú desapareceu e só mais tarde é que se veio a saber que estava nas mãos de um primo do poeta, Eduardo Freitas da Costa.
«O poeta é um fingidor. Finge tão completamente Que chega fingir que é dor A dor que deveras sente.»
No documento «desaparecido» encontravam-se fortes provas de que o célebre «dia triunfal» de 8 de Março de 1914, em que Fernando Pessoa terá escrito «trinta e tal poemas a fio», é no fundo a constatação de uma das maiores características do poeta, o facto de saber fingir.
Caeiro não escreveu todos os poemas seguidos como contou numa carta a Casais Monteiro, terá sido tudo uma premeditada encenação de Pessoa
Fernando Pessoa, o poeta "multiplicado"
Há precisamente 120 anos nascia em Lisboa Fernando António Nogueira Pessoa, um dos maiores poetas portugueses de todos os tempos e que marcou uma geração de artistas e poetas em Portugal.
Apelidado, por diversas vezes, de génio da escrita, Fernando Pessoa marcou a sua vida pela diferença, desde a sua juventude, que passou na África do Sul, até aos seus últimos dias em Portugal, na "companhia" dos seus heterónimos.
Umas vezes idealista, outras realista, ora amargo, ora alegre e bem-disposto, Fernando Pessoa exprimia nas letras tudo o que a alma lhe "falava".
Para melhor se exprimir, Pessoa criou heterónimos, versões do que seriam outros "Fernandos Pessoas", mas bastante diferentes, com personalidades completas e vincadas, evoluíndo e amadurecendo ao longo do tempo.
Álvaro de Campos, o engenheiro naval desiludido com a vida, Ricardo Reis, o médico monárquico que recusou a República, Alberto Caeiro, o camponês sem estudos, simplista e que recusava a metafísica e Bernardo Soares, o semi-heterónimo, na medida em que não diferia muito do escritor real, foram os heterónimos que Pessoa criou (e posteriormente, viria a "matar").
Entre as suas obras, destaque ainda para o livro Mensagem, no qual o autor relembra as glórias passadas de Portugal (em especial a época dos descobrimentos), avalia o estado da Nação e preconiza soluções para o futuro, profetizando até o surgimento do "Quinto Império".
Legado para a História
Fernando Pessoa começou como tradutor, dada a sua facilidade com a língua inglesa, mas foi também jornalista e um dos principais impulsionadores das revistas de poesia em Portugal, tendo ajudado a criar e a lançar a revista Águia (1912), que não durou muito tempo, mas o bastante para trabalhar as suas ideias.
As suas obras e legado foram influências para diversos outros artistas ao longo das últimas décadas, desde a escrita, por exemplo através de José Saramago, até à música, com os Moonspell a basearem-se no seu "Opiário" para uma das suas canções.
Viria a morrer em 30 de Novembro de 1935, na "companhia" dos seus heterónimos e sem ver reconhecida a grandeza que o tempo lhe viria a conceder.
Espólio de Pessoa na Internet
O projecto ambicioso de digitalização de material pessoano poderá vir a ser disponibilizado na página oficial da Casa Fernando Pessoa.
Portugal celebra os 120 anos do nascimento de um dos maiores vultos da cultura e literatura nacionais.Um ambicioso projecto de digitalização de materiais pessoanos poderá abrir novos horizontes para o conhecimento da sua obra além fronteiras. São mais de 1000 livros e cerca de 2300 papéis do espólio do escritor que poderão vir a ser digitalizados e publicados na Internet, informa o "Público". O projecto conta com o apoio da câmara municipal de Lisboa e da Casa Fernando Pessoa.Porém, por resolver está ainda a polémica que opõe a família do poeta e o Estado português sobre o leilão, em Outubro, de valiosos manuscritos e textos inéditos. Existem ainda cerca de 150 livros e revistas na posse dos herdeiros de Pessoa e que não fazem parte do acervo da Casa Fernando Pessoa.
Portugal celebra os 120 anos do nascimento de um dos maiores vultos da cultura e literatura nacionais.Um ambicioso projecto de digitalização de materiais pessoanos poderá abrir novos horizontes para o conhecimento da sua obra além fronteiras. São mais de 1000 livros e cerca de 2300 papéis do espólio do escritor que poderão vir a ser digitalizados e publicados na Internet, informa o "Público". O projecto conta com o apoio da câmara municipal de Lisboa e da Casa Fernando Pessoa.Porém, por resolver está ainda a polémica que opõe a família do poeta e o Estado português sobre o leilão, em Outubro, de valiosos manuscritos e textos inéditos. Existem ainda cerca de 150 livros e revistas na posse dos herdeiros de Pessoa e que não fazem parte do acervo da Casa Fernando Pessoa.
Informação Adicional:
Tabacaria
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira.
Em que hei de pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso?
Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio?
Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas
-Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -
,E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim?
Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantarmos da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.
(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos
invoco a mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso:
talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente
Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira.
Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe "Adeus ó Esteves!",
e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança,
e o Dono da Tabacaria sorriu.
Álvaro de Campos, 15-1-1928
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira.
Em que hei de pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso?
Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio?
Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas
-Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -
,E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim?
Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantarmos da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.
(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos
invoco a mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso:
talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente
Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira.
Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe "Adeus ó Esteves!",
e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança,
e o Dono da Tabacaria sorriu.
Álvaro de Campos, 15-1-1928
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