segunda-feira, 2 de junho de 2008

200 títulos da biblioteca de Pessoa 'online' no dia 13

É o Jôgo da Cabra Cega. Assim mesmo, título com circunflexo no 'o' como impunham as regras ortográficas da época. O livro corre lento, página a página. Um plano e uma paragem. Um vido sobre o plano, cartolina preta por baixo da lombada e o clique da máquina fotográfica que dispara mais uma digitalização. Estamos na varanda da Rua Coelho da Rocha, nº16, casa onde viveu Pessoa, que também começou por assinar com circunflexo e que agora é a sede de uma instituição pública, a Casa Fernando Pessoa.

Desde 14 de Abril que uma equipa coordenada por dois elementos do Centro de Linguística Portuguesa da Universidade de Lisboa (CLUL), o colombiano Jeronimo Pizarro e o italiano Patricio Ferrari, digitaliza, de graça, toda a biblioteca pessoal do poeta dos heterónimos. São cerca de 1200 títulos, entre livros, revistas, jornais, pertencentes à Casa Fernando Pessoa e ao espólio da família. Desses, 200 estarão disponíveis para consulta pública a partir de 13 de Junho, dia em que se celebram os 120 anos do nascimento do autor de A Mensagem, a partir do site da casa Fernando Pessoa.

As mesas de digitalização estão alinhadas na varanda onde a luz natural teima em não ser certa. De vez em quando há uma nuvem que tapa o sol. Nada que depois não se trate na pós-produção, como refere Liliana, uma voluntária, como todos os que ali trabalham e que, entre um virar de página e um disparo tem tempo para fixar frases, ler coisas que pessoa escreveu em algumas margens, sublinhados e no caso deste Jôgo de Cabra Cega, apenas as palavras do autor do livro. Trabalho de paciência este o de virar da página, minuto a minuto, hora a hora, dia após dia? Não, "é uma meditação em movimento", classifica, quando o livro já vai a mais de meio.

A mãe de Patricio Ferrari, um dos coordenadores, chegou ontem de Itália e vai ajudando Liliana no virar de cada página. Patrício está sentado de frente para elas e tem à frente cerca de uma dezena de volumes. São de um dos sobrinhos de Pessoa, Luís Roza, o mesmo que publicou parte do Dossier Pessoa-Crowley, esse que irá a leilão em Outubro. Não será o caso de nenhum dos exemplares que Ferrari tem à frente. Esses manter-se-ão para já com a família. Alguns exibem a assinatura do ex-proprietário na primeira página, aquela a seguir à capa, a que precede o título, um sinal de posse que vai oscilando. Fernando Nobre Pessôa, Alexander Search, uma dos heterónimos, e um único William Alexander Search. "único até agora", como salienta Patricio Ferrari, "porque em Pessoa nada é definitivo.

Bolseiro a fazer doutoramento sobre o poeta, Ferrari reconhece ter aqui uma oportunidade única de conhecer o criador que foi Pessoa. "Consigo conhecer o leitor, o estudioso, o criador. Nas margens, nos sublinhados, nos espaços em branco de muitos dos seus livros estão as marcas desse Pessoa." Aprendeu a lê-lo. Ou melhor, a ler-lhe a caligrafia. O dedo aponta um exemplo: "a rima é uma doença do ritmo", decifra numa das páginas, mas reconhece que Jeronimo Pizarro é melhor nessa tarefa. Foi Pizarro quem transcreveu o inédito atribuído ao heterónimo Alberto Caeiro que vai passar a postal, também no dia 13, esse poema que termina com o verso "tudo é definitivo, tudo é limitado, tudo é cousas" e que fez a equipa de Pizarro parar quando deu com ele na última página de um dos livros que estava a ser digitalizado pertencente à biblioteca que se encontra na Casa Pessoa. Foi a 30 de Abril. Agora essa equipa que oscila entre as sete e as 14 pessoas agora divide-se e encontra-se uma vez por semana na varanda que dá para as traseiras da casa. Sempre que há um sublinhado maior, umas margens mais preenchidas, as atenções aumentam e não há quem não tente decifrar os mistérios de uma letra que foi ficando cada vez mais indecifrável à medida que Pessoa avançava na idade e que, quando escrita a lápis, o tempo foi apagando.

As mãos de Liliana continuam nesse movimento de meditação que os olhos acompanham. Não se demora em nenhuma página. Aquele é um livro sem notas nem escritos. Pertence à categoria "8" de uma seriação criada para este fim e que corresponde aos livros de literatura. Há ainda os de filosofia e psicologia, esoterismo, ciências sociais e políticas, matemática, medicina, jornais, revistas... A equipa teve data para começar, mas não tem nenhuma para terminar uma tarefa que depende do sucesso de protocolos. Com o CLUL ou com a Câmara de Lisboa, que tutela a Casa Pessoa. Disso e do êxito da digitalização no site. Isso será posto à prova já no dia 13.

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