quarta-feira, 11 de junho de 2008

Directora da Casa Fernando Pessoa em entrevista a propósito dos 120 anos sobre o nascimento do poeta

Inês Pedrosa quer “levar Pessoa aos portugueses e não apenas aos lisboetas” O marco de um século e duas décadas sobre o nascimento de Pessoa está a merecer do país – e não apenas de Lisboa – a atenção merecida? Infelizmente não. Não tenho conhecimento de qualquer comemoração a nível nacional, a não ser o programa «Pessoa, Pessoas», que passa agora na RTP, concebido e filmado na Casa Fernando Pessoa e realizado com inexcedível brilho (e muita generosidade) por uma equipa dirigida por Elvis Veiguinha. Sentimo-nos na obrigação de levar Pessoa aos portugueses, e não apenas aos lisboetas. E o programa só foi possível por uma fantástica reunião de boas-vontades – a começar pela disponibilidade das muitas figuras públicas que aceitaram dar o seu tempo e a sua imagem a esta causa. Lastimo que o Governo não tenha até agora demonstrado qualquer interesse na promoção de Fernando Pessoa. A Casa Fernando Pessoa tem sido projectada mais pelo reconhecimento público das personalidades que têm estado à sua frente do que pelas actividades desenvolvidas, já que as verbas disponibilizadas não chegam para um verdadeiro programa de actividades. Quando tomou posse, falou na intenção de captar novas fontes de financiamento. Como é que esse projecto está a decorrer? O dinheiro faz falta, mas não é tudo. O amor pela obra pessoana e o reconhecimento do excelente serviço prestado pela equipa de funcionários da Casa Fernando Pessoa ao longo destes 15 anos de existência levou a que uma equipa de investigadores de várias nacionalidades, coordenada pelo Prof. Doutor Jerónimo Pizarro, se oferecesse para proceder, a título completamente gratuito, à digitalização da Biblioteca de Fernando Pessoa, que é o tesouro da Casa, porque Pessoa tinha o hábito de escrever a lápis nos livros que ia lendo. Esta digitalização nunca tinha sido possível porque o orçamento pedido pela Biblioteca Nacional para o realizar era incomportável. Logo que cheguei à Casa recebi esta generosa oferta, e, deste modo, a biblioteca tem estado a ser digitalizada na Casa, com os scanners e máquinas fotográficas dos próprios investigadores, que me disseram estar gratos ao modo como, ao longo dos anos, aqui foram recebidos. O Prof. Dr. Jerónimo Pizarro responsabilizou-se ainda gratuitamente pela organização de um ciclo de conferências, «Fernando Pessoa, O Guardador de Papéis», que decorrem na Casa todas as quartas feiras do mês de Junho e a primeira de Julho, às 18h30. Quando cheguei, em Fevereiro, fiz uma série de contactos no sentido de encontrar patrocínios rápidos, e consegui fazer um protocolo com o grupo Leya, o grupo editorial que me edita, nos seguintes e claríssimos termos: a Leya apoia qualquer actividade que a Casa Fernando Pessoa lhe proponha, até um determinado montante. Significa isto que enviamos para a Leya as facturas desses eventos – é importante realçar este aspecto para que se entenda que a verba concedida pela Leya não chega às minhas mãos, nem às de qualquer outra pessoa na Casa. Tive outras e mais chorudas propostas, mas de entidades que pretendiam indexar a imagem de Pessoa e os conteúdos da Casa às suas marcas e aos seus interesses –e isso nunca permitirei. Assim, pudemos organizar a primeira edição do festival «Letras em Lisboa», em parceria com o Forum das Letras de Ouro Preto (Brasil), pudemos criar e montar, em tempo recorde, a exposição «Os Lugares de Pessoa» (patente até Setembro), pudemos encenar a belíssima «Carta da Corcunda ao Serralheiro», do único semi-heterónimo feminino de Pessoa, Maria José, com interpretação de Ângela Pinto (que estará em cena nos próximos dias 18, 19 e 20), e pudemos fazer a série de programas «Pessoa, Pessoas», que a RTP está a emitir diariamente, durante todo este mês. Mas este apoio está a acabar, e precisamos urgentemente de outros. Estou a trabalhar para isso. Aproveito para deixar o apelo às empresas portuguesas, ou a mecenas individuais. A Direcção Municipal de Cultura, de que a Casa depende, conseguiu ampliar o nosso orçamento inicial de 15 mil para 35 mil euros anuais – mas, como se sabe, a Câmara enfrenta neste momento problemas muito concretos de falta de liquidez. Aventou também a hipótese de tirar maior proveito para Lisboa da imagem de Pessoa no mundo. Que ideias gostaria de concretizar nesse âmbito? Gostaria de criar uma revista bilingue que promovesse simultaneamente a cidade e o poeta, o turismo cultural e a literatura. Tenho também a intenção de realizar em Novembro, na Casa Pessoa, um congresso internacional sobre Fernando Pessoa, atraindo investigadores de outros países. E de realizar, em Abril de 2009, a segunda edição do «Letras em Lisboa», com uma maior participação de escritores e artistas – cantores, cineastas, etc. – dos países de expressão portuguesa. E queremos também criar visitas guiadas à Lisboa de Pessoa, a partir da Casa. Penso que seria importante que a Casa estivesse aberta ao fim de semana, quando as pessoas têm mais disponibilidade para a visitar. Mas temos muitos outros projectos dos quais é ainda prematuro falar. Todos os dias as pessoas da equipa da Casa aparecem com ideias novas, e muito boas. No sentido de divulgar a obra pessoana, aceitou uma proposta do jornal brasileiro Folha de São Paulo para organizar uma colecção de antologias dos heterónimos de Fernando Pessoa que será distribuída com o jornal ao longo deste ano em que se assinalam os 120 anos do nascimento do poeta. Como é que esse trabalho está a decorrer, e qual tem sido a aceitação no Brasil? Aceitei essa proposta antes de ser convidada para a direcção da Casa e a verdade é que, com o muito trabalho destes últimos meses, ainda não consegui acabar a primeira dessas seis antologias, que sairão ao longo do próximo ano. Mas o Brasil tem verdadeira paixão por Fernando Pessoa – cantores como Maria Bethânia e Caetano Veloso têm feito muito por isso, também, como aliás por outros poetas portugueses. Da Casa Fernando Pessoa tem-se por vezes a ideia de que há pouco dinheiro, mas muito ‘amor à camisola’ de quem integra a equipa. É assim? É, de facto, assim, de uma forma extrema e comovente. O pessoal da Casa trabalha dias e noites a fio – porque a Casa é simultaneamente um museu e um centro cultural, com debates, conferências e espectáculos, naturalmente ao fim da tarde e à noite – sem receber horas extraordinárias, uma injustiça que se prolonga há anos e que me parece urgente reparar. E trata-se de uma equipa muitíssimo criativa, polivalente e empenhada. A produtividade da Casa é altíssima e o ambiente óptimo. Porque além dos eventos que aparecem nos jornais, a Casa realiza um trabalho de fundo, contínuo, com a população: além das visitas guiadas a escolas, oferecemos ateliers de expressão escrita, plástica e musical para crianças (a partir dos três anos), e, agora, também para os seniores, os mais velhos, que estão muitas vezes isolados e sem estímulo para viver. Gostaria de sublinhar que tenho encontrado idêntico empenhamento e amor à camisola no Director Municipal de Cultura, o professor Dr. Rui Pereira. O que é que mais gosta de Pessoa? Uma fase, um heterónimo? O que é que mais a toca? Apaixonei-me por Pessoa na adolescência através da poesia de Álvaro de Campos, e é esse, ainda, o heterónimo que mais me toca. E nunca me canso de reler «O Livro do Desassossego» de Bernardo Soares. Mas neste momento estou fascinada com Maria José, uma jovem corcunda através da qual Pessoa transmite todas as alegrias e dores da paixão. «Meter-se alguém connosco é a gente ser mulher», escreve Pessoa, com lágrimas autenticamente femininas. Pessoa é uma surpresa constante, a surpresa e o soco da verdade no nosso coração. Como é que gostaria que o país homenageasse Pessoa? Já que temos o Dia de Luís de Camões, não devíamos ter o Dia de Fernando Pessoa? Um dos problemas de Portugal é o de ser um país-a-dias. Saltitamos de homenagem em homenagem, de festa em festa, de espavento em espavento, e o trabalho de fundo continua por fazer. Devíamos ter um plano para Fernando Pessoa, isso sim. Para potenciar a cultura portuguesa através desse inesgotável cartão de visita. Tenho algumas ideias sobre isso – mas não adianta lançá-las ao vento sem suporte. Como conhecedora da obra e do espírito – tanto quanto possível – do poeta, julga que se Pessoa tivesse nascido há 20 anos, e não há 120, teria condições para crescer Pessoa? Ou a sociedade actual encarregar-se-ia de aniquilar o seu espírito irrequieto e insatisfeito? Nada poderia aniquilar Fernando Pessoa – como não o aniquilaram as dificuldades económicas constantes e o desdém do meio cultural do seu tempo que, salvo honrosas excepções, não o soube reconhecer. Não esqueçamos que Pessoa foi chumbado quando se candidatou a um lugar de bibliotecário, e que «Mensagem», o único livro que publicou em vida, mereceu apenas uma menção honrosa, num prémio literário ganho por uma porcaria qualquer de que hoje ninguém lembra o título nem o autor. Consegue imaginar um Fernando Pessoa no Second Life, ou a escrever num blogue? Perfeitamente. Nenhuma existência virtual tinha segredos para ele.
Andreia Gouveia

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